Caminho de Santiago da Geira e dos Arrieiros (9ª Etapa Soutelo de Montes - A Estrada)
near Soutelo de Montes, Galicia (España)
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Itinerary description
Pouco passa das sete e meia. Saímos já com pequeno almoço tomado incluído no preço do quarto. Enquanto subimos a “Estrada de Ourense" recordamos o final da tarde de ontem. Não é que algo de extraordinário tenha acontecido mas os momentos simples também são agradáveis de recordar. Pouco passava das duas e meia da tarde (hora espanhola) quando entrámos na Pensión Restaurante Millenium. Ótima hora para almoçar em Espanha. Depois saímos para conhecer a povoação. Soutelo estende-se ao longo da N-541, a meio caminho entre Pontevedra e Ourense. É Terra de Montes onde a dura natureza e o domínio dos “juíces meiríños", que a governaram e exploraram, moldaram a vida e o “xeito de ser" das gentes. Mas também é Terra de Gaiteiros, lembra-nos o singelo monumento que aqui abre o livro do saber de Avelino Cachafeiro: de um lado a Gaita, do outro a filosofia de quem aprendeu e se fez «voando coas aas da vida». Recorda-se na Galiza o autor da “Muiñeira de Chantada", que aos 25 anos “fue proclamado como el mejor gaitero de Galicia” e aqui, na Praza dos Gaiteiros, todos os anos, com a Festa do Gaiteiro, “unha xuntanza de xente”, em que as “muiñeiras" não faltam nem tão pouco quem as dance, se homenageia “Os Gaiteiros de Soutelo": Avelino, Fermin, Castor e Bautista. A música das “gaitas” soa cá dentro e, na imaginação, surge a imagem do casal moleiro que, aguardando o fim da moenda, dança ao compasso da andadeira, com a música do grão correndo da moega pela quelha para o olho da mó e o cantar da água tangendo as penas do rodízio. Regresso à realidade. Passamos o monumento que presta homenagem ao grupo que levou a música celta galega muito para além das fronteiras da Galiza. No meu silêncio interior presto homenagem, eu também, à criatividade dos filhos do povo simples que, partindo as amarras do destino, se transcendem até que da lei da morte se libertam.
Olho para o outro lado da rua. Os toldos pretos da “Kalis” trazem-me à memória o jantar de ontem, a simpatia do proprietário e a deliciosa conversa que tivemos. Sorridentes recordamo-lo: Amante de Portugal tem na loja o que lhe é permitido em produtos portugueses. Azeites… vinhos… quando elogiámos a escolha, perguntou «o que non é bo en Portugal?...». Finalizámos a refeição com um belo licor caseiro e uns bombons de chocolate, oferta da casa já depois de termos pago. Quem nos adoça a boca acaricia-nos a alma.
Saímos de Soutelo sem que Soutelo de nós queira sair. O passeio ao lado da estrada confia que alheados possamos seguir e meditar. Mas as Terras de Montes, as terras de sonhos, as terras de lendas e as lendas destas terras… inundam-me e fluem na minha memória. Vou desaguando esta inundação. Conta-se que os primeiros povoadores da Galiza em castros nas Rias Baixas se instalaram, mas depressa começaram também a interiorizar povoados. Só nos montes agrestes e perigosos se não aventuravam. O culto da pilhagem de sua natureza levou a que se tornasse comum o roubo de gado e… mulheres. Pois, isso mesmo, as mulheres eram comumente objeto de rapto entre aqueles povos. A miscigenação, conta a lenda, trouxe mulheres “ameigadas" com a “maldición de sangue" que fazia com que depois de parirem uma primeira criança normal e sã passavam a dar à luz crianças mortas ou deficientes e anémicas. Ora, estas mulheres, “amaldiçoadas pelas meigas” eram temidas e intoleradas pelas tribos supersticiosas que, para delas se verem livres, as expulsavam para os montes, onde as feras e as condições selvagens da natureza se encarregariam de que não sobrevivessem. Para os “montes" eram também desterrados os homens violentos e aqueles que de algum modo pudessem estar sob o domínio dos feitiços das criaturas sobrenaturais. Diz a lenda que a natureza foi mais tolerante que as gentes, oferecendo aos desterrados a caça das florestas, o peixe dos rios e o minério dos montes. Formaram-se comunidades castrejas em Terras de Montes de gentes aguerridas, organizadas e com leis próprias. Diz-se que se impuseram a interdição de acasalar com elementos de outras tribos e que sempre que essa lei foi violada se verificou a “maldición de sangue".
Interessante achei eu que a esta lenda se associe o facto, estatisticamente comprovado, da existência nestas terras de uma maior incidência de mulheres com sangue RH negativo, o que, desconheciam os povos antigos, é (ou era, porque hoje já existe solução) causa de problemas nas gestações depois da primeira. Afinal a “maldición de sangue” tem explicação científica mas… tão pouco romântica.
Saímos da Estrada de Pontevedra para uma espécie de zona industrial que contornamos. Parece-me que vamos voltar de seguida à estrada. Passamos sobre o Regueiro do Mesón. Entramos em caminho florestal e seguimos ladeados de carvalhos. Não há trânsito e o chilrear dos pássaros acompanha-nos. Pela manhã caminhamos sempre mais depressa e vamos conversando sobre as vivências da véspera. Agora falamos sobre a decisão de encurtar o número de etapas que faltam, de 3 para 2, aumentando a distância a percorrer hoje e amanhã. A Alice inicialmente mostrou-se renitente mas, perante o perfil altimétrico do caminho que falta anuiu. Hoje não iremos ficar em Codeseda mas em A Estrada. Telefono para reservar quarto no Hostal A Bombilla. Sem problema. Tão poucos são os peregrinos neste caminho.
Passámos já perto de Ventoxo. Os carvalhos deram lugar a eucaliptos. Uma coisa boa: o odor!... mesmo que ache que é uma praga, este aroma refresca-nos por dentro.
Fontela já ficou para trás e os pés começam a queixar-se de tanto asfalto. Entramos em Acivedo. Um cheiro adocicadamente delicioso e bem conhecido invade-me as narinas. A razão está aqui: um sabugueiro em flor que espalha o seu perfume ofertando-o graciosamente a quem passa. Encontramos o encanto de Acivedo nesta paz moribunda de uma aldeia rodeada de floresta e uma pequena veiga que justifica os velhos hórreos. Os nossos passos ressoam nesta calçada e ecoam nas casas de xisto, térreo na cor, que contam histórias de luta e resiliência. Dizem que Paca, a última vaca que por aqui pasta, está em perigo por força da evolução da zona por instalação de fontes renováveis de energia. E então?... que alternativas temos?... se nos recusamos ao sacrifício dos lugares que podem fazer a diferença, esperamos até quando?... bem, nem eu sei se é assim que penso... Não se vê nenhuma das cinquenta e tal pessoas que ainda aqui abitam. Sendo cedo não o seria para uma aldeia viva. Cá vamos. Descemos à várzea. O caminho apertado entre muros está demasiado húmido e tem ervas e silvas cortadas recentemente. A razão está ali: um homem de meia idade faz guerra à selvagem vegetação que aqui encontrou o ambiente propício à proliferação. — Bom dia. Muito trabalho?... — dizemos. — Bom día. Estou cortando a maleza porque senón por aquí non pasará ninguén. — Agradecemos e, não sabendo eu porquê, as perguntas que me afloraram ao espírito ficaram por fazer. Talvez por tanta ser a lama do caminho e imensa a dificuldade de escolher os sítios onde pôr as botas para que menos se enterrem.
Entre “cuidado! Não pises aqui que afunda.” e “talvez por ali.” e outras semelhantes frases e algumas interjeições que aqui não transcrevo, se venceram os últimos 800 metros que, amuralhados, fomos obrigados a percorrer. Passámos ali atrás a Regueira do Valiño e o caminho enxugou um pouco. Agora vamos aqui limpando a lama das botas na orvalhada erva que ladeia este caminho, sem muros, que atravessa uma linda e selvagem carvalheira.
Olho para este parque de merendas à entrada da Freixeira. A relva viçosa está alta, sinal que pouco terá sido utilizado nos últimos tempos. Quando o calor apertar deverá ser delicioso. Grossos e altos carvalhos sombreiam o espaço à beira da frescura do Río Cavelo que o limita. Imagino as animadas conversas e brincadeiras noite dentro à luz dos candeeiros distribuídos perto das mesas. Ali, plantado no meio da erva está um belo cruzeiro. Os cruzeiros são tanto parte material da identidade histórica e tradição da Galiza como o são, na parte espiritual, as lendas e a Santa Compaña. Onde quer que vades os encontrareis. Mais típico que os cruzeiros e a Santa Conpaña?... só se forem os hórreos. O que é a Santa Compaña?... não o vou dizer sob pena de me ver eu, ainda hoje, levando a cruz à frente de uma procissão de almas penadas.
Entramos em Cachafeiro e logo nos veio a memória Avelino e os Gaiteiros do Soutelo. Só mesmo o nome é comum. Se algo os ligava a esta aldeia perdeu-se no tempo, pois que Avelino, o pai e o avô, de Soutelo eram naturais. A aldeia estende-se pela PO-2205 abaixo. A pacatez advém-lhe do nome, ou este daquela. Um hórreo debaixo de um enorme castanheiro… um painel de azulejo com a Virgen Peregrina, na parede de uma casa… outro hórreo num quintal… o Bar Cachafeiro fechado… a Taberna do Panadeiro fechada… e saímos do Cachafeiro.
Ainda vou aqui a pensar: são 9:40h, mas que jeito tinha dado que estivesse aberto o bar ou a taberna. Saímos da estrada e, no início deste caminho de terra batida, encontramos este painel. Leio: «A Ruta das Pontes do Lérez é unha magnífica chave que abre as sendas da história e da natureza, neste fermoso concello de Forcarei, na Terra de Montes». Registo o achado e sigo atrás da Alice que já lá vai adiante. Chegamos juntos à Ponte de Gomail. No velho poste sinalizador está mais uma pequena placa indicando a direção do caminho. Passamos a velha ponte medieval sobre o Río Lérez. Um painel envelhecido ilumina-nos um pouco mais o conhecimento: «É unha das pontes de arco máis antigas desta zona (século XV)… Trátase dunha ponte construída em mampostería en forma de “chapacuña" de tres arcos… ». Fico a pensar — que raio quer dizer “chapacuña"?... mais abaixo lê-se «Por reste trazado discorría o camiño dos “arrieiros", os cales transportaban as suas prezadas mercadorías até Santiago de Compostela. Este percorrido foi recuperado recentemente como vía de peregrinación a través do “Camiño da Geira e dos Arrieiros"». Serena, como que descansando da agrura do caminho percorrido, a água desliza, refletindo sonhos, por baixo da ponte indiferente a quem sobre ela passa. Pousamos as mochilas e delas tiramos um pouco do que na véspera comprámos para nos servir de pequeno almoço. Comemos uma banana saboreando-a com paz, o murmúrio da água e o chilreio dos pássaros deste aprazível recanto.
Subimos!... e… continuamos a subir. Ainda nem um terço da jornada feita… que é isto?... lamentos?... vamos lá, toca a arribar. Há momentos assim. Isto não sou eu a falar, são os meus bastões. Coitados, estão fartos de me suportar.
Vamos silenciosos até no pensar. Ouve-se apenas o som ofegante da respiração. Passámos há pouco a Carballeira do Rei e agora, rodeados de beleza e ar purificador, subimos o Monte de Baladre. A urze rasteira embeleza o caminho. O mato é baixo, ponteado aqui e ali por pinheiros de pequeno porte há pouco plantados, ajuizando pelo lineado que o terreno mostra. Lá longe vê-se uma aldeia. É Liñares que, no vale do Rego do Leiro, vive do fruto das terras férteis e húmidas. Pisamos terrenos sagrados que, por mais perto do céu estarem, foram escolhidos por pré históricas gentes para sua derradeira morada. O silêncio rodeia-nos e o céu envolve-nos. Lá em baixo, à nossa esquerda onde a vista não enxerga, sei que existem três misteriosos lugares onde nem o tojo cresce; que alagam no inverno com mais água que a que em cima lhes cai e secam no verão mais depressa que se esperaria; que são redondos ou ovóides e que o povo deles fala com temor, contando lendas que de geração em geração vão passando. São as “Eiras dos Mouros”. Todas três se situam ao longo do Camiño do Corvo, paralelo a este que seguimos nós. Releio e transcrevo uma parte de um já relido texto: « Os pegureiros testemuñan que o gando se mostra remiso a pacer nas aciagas herbeiras e que os paxaros evitan sobrevoar o seu espazo aéreo e, se o fan, non ousan dar chío. Pola súa banda, os cazadores afirman non ter atopado nelas nin cagallas de coello nin furo de toupa nin rastro de lobo nin camisa de serpe; nin o xabaril vai meter alí o fociño! »
Entramos em A Mámoa por um espaço de altos, frondosos e velhos carvalhos. Os troncos destas antiquíssimas árvores são esteio de grossas heras que por elas trepam. De um e outro lado existem muros sem idade feitos de xisto que o musgo cobre e com um tipo de construção que visto eu nunca tinha. As pedras menores deitadas envolvem outras maiores, em forma de trapézio, numa aparência de pequenas portas fechadas. Ali à frente está o cruzeiro. Li que datará de 1801 mas foi recuperado, já que há muito se encontrava “descabezado". No entanto, a avaliar pela base e o fuste, merecia um melhor encabeçamento. À nossa frente uma casa antiga muito bem recuperada. Junto dela e por aqui espalhadas estão umas figuras, feitas de barrinhas de aço de construção pintadas de amarelo, ilustrando e direcionando “o camiño" que seguimos. Dou agora por mim a pensar no topónimo. A Mámoa de explicação não necessita. O que necessidade sinto é de saber qual delas (das mamoas, claro) é que motivou o nome, se este adveio por tantas haver ao redor ou se alguma aqui existiu e a aldeia foi edificada no “campo santo" dos antepassados neolíticos. Saímos da aldeia a subir pela estrada que às viaturas acesso lhe dá. Vou olhando para a imagem do GPS onde a localização da necrópole do “Campo das Mámoas", ou “Campo das Antas", se encontra assinalada pelo símbolo de “monumento”. Deverá ser por aqui à nossa esquerda, mas sem alguém que nos guie e elucide somos amblíopes. Andámos uns duzentos metros para lá da marca monumentosa e aqui está um grupo que não esperava encontrar. São arqueólogos e mexem a terra com um afã desusado nestes profissionais pacientes e metódicos. Metemos conversa mas só obtemos respostas breves. Esta pressa deve-se a causas de oposição à decisão publicada no mês passado de aqui instalar o campo eólico As Penizas. Há que justificar rapidamente a razão por que nada deve ser aqui instalado que possa pôr em causa a integridade desta jóia do neolítico com mais de 5000 anos.
Deixámos os arqueólogos com a sua tarefa desejando-lhes sorte. Que raio, com tantos montes à volta tinha que ser aqui?... bem, esqueçamos e sigamos. Caminhamos já ao lado da EP-7001 que liga Codeseda a Forcarei. Felizmente existe um carreirinho junto da estrada que evita que caminhemos pelo asfalto. Estamos cá em cima. Perdem-se os nossos olhos nas montanhas que nos rodeiam e voa a nossa imaginação para lá delas encontrando-se com gentes que para aqui foram desterradas. Que belos são estes lugares!
Sabucedo não fica longe. Lembramos a Rapa das Bestas e os selvagens cavalos que são recolhidos nestas serranias ao redor para a grande festa que em julho se celebrará. Tradição que mais de quatrocentos anos já tem. A doma ou “cortar das crinas" dos cavalos, entre as muitas dezenas que no curro se apertam, por corajosos cavaleiros que dominam as “bestas" (sem pejorativa intenção) de mãos nuas, enfrentando o perigo da luta entre machos que juntos se não toleram, será um espetáculo fero e de rara emoção que reporta à antiguidade e proto-história da Terra de Montes.
Descemos as encostas da Raposa por ancestrais caminhos entre carvalhos e muros de pedra solta que, cimentados pelo musgo, de pé se vão mantendo. Passámos o Barranco de Vesacartalla e vamos agora num apertado caminho que a passagem de gente, bestas e águas afundaram entre ribanceiras. Cortámos à esquerda e aparece-nos agora aqui algo que não esperávamos: “O Pelegrín". Com vários caminhos percorridos já me encontrei outras vezes com este “pelegrín", a primeira das quais foi na Expo92 em Sevilha, quando apresentado foi como “la mascota del Xacobeo de 1993”. Nasceu das mãos de Luís Carballo por encomenda da Xunta da Galícia para dar uma imagem mais moderna na promoção dos Caminhos de Santiago. Aqui, à sombra de uma fresca carvalheira, era imprevisível este encontro.
Chegamos a Vilaboa. Passamos sem que algo nos suscite a atenção nesta pequena aldeia.
Seguimos por estrada rural apertada entre prados… oh, bolas! Acaba de aterrar à minha frente um pássaro que vinha a esvoaçar com dificuldade. Apanho entre uma pedra e um tufo de erva. Não está ferido. Parece-me um tordo comum e ainda tem indícios de penugem, coitado do passarito. Lanço-o ao ar para o meio do prado. Pode ser que se safe.
Já vou aqui no encalço da Alice que do “drama" do passarito não se apercebeu. Vamos passar num túnel com a entrada enfeitada por doiradas giestas que passa por baixo da EP-7001 e tem heras penduradas a enfeitar a saída. Saímos e ladeia-nos agora um muro verde e… entramos no lugar da Portela junto a uma fonte. Aqui uma casa ajardinada tem um poste de granito com um azulejo colado, representando a vieira de Santiago. Nada de especial a não ser não me recordar de, neste caminho, ter visto alguma outra.
Agora que caminho é largo e desce suavemente, vamos conversando.
Chegamos a A Agrela… bem, não sei bem se é A Agrela ou se é A Grela porque em documentos oficiais sobre toponímica da Galiza aparece A Agrela mas em textos populares sobre este caminho aparece A Grela. Seja como for chegamos a esta pequena aldeia e aparece-nos logo aqui o Santuário de Nosa Señora de Guadalupe, ou será a Capilla de Nosa Señora de Guadalupe?... prefiro a primeira. Muito procurei eu informação sobre este templo. Pouco me foi revelado até encontrar informação exaustiva no site Codeseda.com que é da responsabilidade da Asociación Codeseda Viva. A construção é barroca, à semelhança de muitos outros na Galiza, datando de 1748, foi fundada por um presbítero de apelido Cabada e outros elementos da mesma família. Inicialmente era uma ermidazita sem grande importância mas, tantos e de tal ordem foram os donativos, que poucos anos passados se construiu o templo atual. Pelo aspeto envelhecido não mais deve ter sido mexido. Ao lado do escadório está… isso mesmo: um esperado mas humilde cruzeiro. Subimos. Num nicho, na fachada, sobre a porta, está a imagem da Virgem de aspeto muito mais novo que a igreja. As portas fechadas não permitem que o interior visitemos e, se a fé antiga que milagres fazia a tivéssemos nós, garantir que aquilo que no seguinte documentado texto leio se cumpria em benefício de nossas almas «Su Santidad Pio XI, ha concedido indulgencia plenaria y bendición apostólica “in artículo mortis” a todo el que comulgue en el altar de nuestra Señora de Guadalupe de A Grela.» A fé antiga não terei mas suficiente será para que, de cá de fora e da alma vinda, faça uma curtíssima mas sentida prece: Acompanha-nos Senhora nos caminhos descuidados da vida!
Contornamos a igreja e seguimos à sombra, oferta destes carvalhos que quase tão antigos quanto o templo serão. Subindo o Monte da Grela meditativos vamos pelo caminho que, dizem, seguia (ou segue ainda?) a imagem da Virxe da Grela no primeiro fim de semana de setembro para se encontrar, lá em cima na Cruz da Grela, com a “comitiva relixiosa" de Codeseda que, pelo Caminho da Costa, desaparecido devido à “Concentración Parcelaria”, trazia as imagens paroquiais, incluindo San Xurxo o padroeiro, para ali prestarem homenagem a Nosa Señora de Guadalupe. Li que, sendo o povo do mar, marinheiros e pescadores da “mariña galega", devotos de Nosa Señora de Guadalupe, também vinham em grande número para participar nesta homenagem e na romaria que se seguia. Então tinha lugar uma cerimónia que «consistía en que o santo patrón e demais santos fixeran a reverencia á Virxe anfitriónia e, mentres o sacerdote rezaba unhas oracións, os devotos axeonllábanse no chan en mostra de acatamento e veneración».
Seguimos o GPS mas não sei se no bom caminho continuamos, já que não me parece suficientemente largo para que por ele passe o cortejo da Virgem que à Grela sobe.
Cá estamos, no cimo do monte onde se cruzam os caminhos, e ali está a famosa Cruz da Grela. É talhada numa peça só, tem um braço mais comprido do que o outro, com rebaixo fileteado nas faces e plantada sobre uma rocha in situ. Tão simples e humilde, tão abandonada e tão rica de simbolismo e tradição. Quem diria?...
Sem ajoelhar, que muito para caminhar ainda há, prestamos nós também veneração à Virgem e vamos descendo o monte imaginando “o santo patrón e demais santos" fazendo a reverência à “Virxe anfitriónia". Perdoem este meu sorriso. Respeito as tradições e acredito que a fé destas gentes estará a anos luz daquela que me leva a rumar a Santiago, mas questiono-me sobre o folclore de que se revestem estas tradições e do seu significado e necessidade. Se o povo gosta e a sua fé alimenta, porque não?...
Suavizou a encosta e, de um e outro lado, os campos são de pasto. Passamos por Currelos. Além dois cavalos pastam mansamente. Estes não irão entrar na festa, são demasiado mansos.
Entramos em Codeseda. Se Braga, Berán, Ribadavia e Beariz foram importantes na recuperação, reconhecimento e certificação do Caminho da Geira e dos Arrieiros, Codeseda não o foi menos. O Caminho da Geira Romana desde Braga à Portela do Homem, já definido e bem delineado, foi apresentado por Francisco Sampaio, Presidente da Região de Turismo do Alto Minho, no “Encontro sobre os Caminhos Portugueses a Santiago”, realizado em abril de 1995, em Valença do Minho. No entanto, a parte espanhola não avançava. Com a criação do site codeseda.com em 2001, começa-se a reunir e divulgar aqui informação sobre a rota de romeiros de Santiago que por estas terras passavam. Em colaboração com codeseda.com alguns dirigentes do ”Museo do Pobo Estradense” investigam a passagem de peregrinos por A Estrada e publicam também o resultado das investigações em vários artigos. Depois A Coruña traça e publica o “mapa oficial" da rota através da província; seguem-se iniciativas em Ribadavia para estudar a passagem pela zona de O Ribeiro e, em 2009, nasce a associação “Camiño Xacobeo Miñoto Ribeiro - AMR2009”; dois anos mais tarde, por necessidades e ordem jurídica, codeseda.com funda a Associação Codeseda Viva. Em 2014 começa a colaboração entre a AMR2009 e Codeseda Viva para que seja definida uma rota exata em Espanha para o caminho que partia de Braga e atravessava O Ribeiro. Este caminho seria publicado no Wikiloc em 2015. Nesse ano fazia eu o Camiño de El Salvador, o meu primeiro caminho nas rotas de Santiago. No ano seguinte tive conhecimento da existência deste caminho. Dizia-se que o traçado ainda era confuso e que as dificuldades eram imensas. Mas a vontade de o percorrer crescia dentro de mim.
Ali está, entre centenários carvalhos, o Bar Pub Camiño da Geira. É local de referência e ponto de paragem “obrigatória" para os peregrinos que aqui passam. No edifício que muitos anos já sentiu passarem entramos e somos saudados com simpatia, quase com carinho, pela senhora por detrás do balcão. Pedimos duas “cañas". Vêm acompanhadas por fatias de “tortilla". Maricarmen diz chamar-se e pede-nos que assinemos o livro dos peregrinos. Diz que eu sou o “peregrino 272” e a Alice o 273. Pergunta se nos importamos que nos tire uma foto para publicar no site. Sentamo-nos cá fora a saborear a cerveja, a quietude do lugar e a sombra dos velhos carvalhos.
Deixo a minha companheira ainda a saborear a cerveja, a mochila fica também ali encostada à parede e, do peso aliviado, vou ali visitar a Igrexa de San Xurxo. Saboreando a paz e a sombra destes enormes carvalhos, testemunhas silenciosas e indiferentes do que sob as suas frondosas ramagens se vai passando, liberto o meu espírito e sigo assim leve ouvindo apenas o queixume rangente da areia sob as minhas botas. Observo, para lá do “Campo Santo, os campanários de um templo que nasceu românico e que as épocas, as intempéries e as gentes, que por ele passaram, foram modificando e deixando marcas tais que do original pouco resta. Contemplativo e um pouco absorto vou olhando alheado. Gostava de ter entrado mas… as portas estão fechadas. Dou mais uma olhadela aos impressionantes campanários.
(Texto incompleto por limitações do Wikiloc)
Olho para o outro lado da rua. Os toldos pretos da “Kalis” trazem-me à memória o jantar de ontem, a simpatia do proprietário e a deliciosa conversa que tivemos. Sorridentes recordamo-lo: Amante de Portugal tem na loja o que lhe é permitido em produtos portugueses. Azeites… vinhos… quando elogiámos a escolha, perguntou «o que non é bo en Portugal?...». Finalizámos a refeição com um belo licor caseiro e uns bombons de chocolate, oferta da casa já depois de termos pago. Quem nos adoça a boca acaricia-nos a alma.
Saímos de Soutelo sem que Soutelo de nós queira sair. O passeio ao lado da estrada confia que alheados possamos seguir e meditar. Mas as Terras de Montes, as terras de sonhos, as terras de lendas e as lendas destas terras… inundam-me e fluem na minha memória. Vou desaguando esta inundação. Conta-se que os primeiros povoadores da Galiza em castros nas Rias Baixas se instalaram, mas depressa começaram também a interiorizar povoados. Só nos montes agrestes e perigosos se não aventuravam. O culto da pilhagem de sua natureza levou a que se tornasse comum o roubo de gado e… mulheres. Pois, isso mesmo, as mulheres eram comumente objeto de rapto entre aqueles povos. A miscigenação, conta a lenda, trouxe mulheres “ameigadas" com a “maldición de sangue" que fazia com que depois de parirem uma primeira criança normal e sã passavam a dar à luz crianças mortas ou deficientes e anémicas. Ora, estas mulheres, “amaldiçoadas pelas meigas” eram temidas e intoleradas pelas tribos supersticiosas que, para delas se verem livres, as expulsavam para os montes, onde as feras e as condições selvagens da natureza se encarregariam de que não sobrevivessem. Para os “montes" eram também desterrados os homens violentos e aqueles que de algum modo pudessem estar sob o domínio dos feitiços das criaturas sobrenaturais. Diz a lenda que a natureza foi mais tolerante que as gentes, oferecendo aos desterrados a caça das florestas, o peixe dos rios e o minério dos montes. Formaram-se comunidades castrejas em Terras de Montes de gentes aguerridas, organizadas e com leis próprias. Diz-se que se impuseram a interdição de acasalar com elementos de outras tribos e que sempre que essa lei foi violada se verificou a “maldición de sangue".
Interessante achei eu que a esta lenda se associe o facto, estatisticamente comprovado, da existência nestas terras de uma maior incidência de mulheres com sangue RH negativo, o que, desconheciam os povos antigos, é (ou era, porque hoje já existe solução) causa de problemas nas gestações depois da primeira. Afinal a “maldición de sangue” tem explicação científica mas… tão pouco romântica.
Saímos da Estrada de Pontevedra para uma espécie de zona industrial que contornamos. Parece-me que vamos voltar de seguida à estrada. Passamos sobre o Regueiro do Mesón. Entramos em caminho florestal e seguimos ladeados de carvalhos. Não há trânsito e o chilrear dos pássaros acompanha-nos. Pela manhã caminhamos sempre mais depressa e vamos conversando sobre as vivências da véspera. Agora falamos sobre a decisão de encurtar o número de etapas que faltam, de 3 para 2, aumentando a distância a percorrer hoje e amanhã. A Alice inicialmente mostrou-se renitente mas, perante o perfil altimétrico do caminho que falta anuiu. Hoje não iremos ficar em Codeseda mas em A Estrada. Telefono para reservar quarto no Hostal A Bombilla. Sem problema. Tão poucos são os peregrinos neste caminho.
Passámos já perto de Ventoxo. Os carvalhos deram lugar a eucaliptos. Uma coisa boa: o odor!... mesmo que ache que é uma praga, este aroma refresca-nos por dentro.
Fontela já ficou para trás e os pés começam a queixar-se de tanto asfalto. Entramos em Acivedo. Um cheiro adocicadamente delicioso e bem conhecido invade-me as narinas. A razão está aqui: um sabugueiro em flor que espalha o seu perfume ofertando-o graciosamente a quem passa. Encontramos o encanto de Acivedo nesta paz moribunda de uma aldeia rodeada de floresta e uma pequena veiga que justifica os velhos hórreos. Os nossos passos ressoam nesta calçada e ecoam nas casas de xisto, térreo na cor, que contam histórias de luta e resiliência. Dizem que Paca, a última vaca que por aqui pasta, está em perigo por força da evolução da zona por instalação de fontes renováveis de energia. E então?... que alternativas temos?... se nos recusamos ao sacrifício dos lugares que podem fazer a diferença, esperamos até quando?... bem, nem eu sei se é assim que penso... Não se vê nenhuma das cinquenta e tal pessoas que ainda aqui abitam. Sendo cedo não o seria para uma aldeia viva. Cá vamos. Descemos à várzea. O caminho apertado entre muros está demasiado húmido e tem ervas e silvas cortadas recentemente. A razão está ali: um homem de meia idade faz guerra à selvagem vegetação que aqui encontrou o ambiente propício à proliferação. — Bom dia. Muito trabalho?... — dizemos. — Bom día. Estou cortando a maleza porque senón por aquí non pasará ninguén. — Agradecemos e, não sabendo eu porquê, as perguntas que me afloraram ao espírito ficaram por fazer. Talvez por tanta ser a lama do caminho e imensa a dificuldade de escolher os sítios onde pôr as botas para que menos se enterrem.
Entre “cuidado! Não pises aqui que afunda.” e “talvez por ali.” e outras semelhantes frases e algumas interjeições que aqui não transcrevo, se venceram os últimos 800 metros que, amuralhados, fomos obrigados a percorrer. Passámos ali atrás a Regueira do Valiño e o caminho enxugou um pouco. Agora vamos aqui limpando a lama das botas na orvalhada erva que ladeia este caminho, sem muros, que atravessa uma linda e selvagem carvalheira.
Olho para este parque de merendas à entrada da Freixeira. A relva viçosa está alta, sinal que pouco terá sido utilizado nos últimos tempos. Quando o calor apertar deverá ser delicioso. Grossos e altos carvalhos sombreiam o espaço à beira da frescura do Río Cavelo que o limita. Imagino as animadas conversas e brincadeiras noite dentro à luz dos candeeiros distribuídos perto das mesas. Ali, plantado no meio da erva está um belo cruzeiro. Os cruzeiros são tanto parte material da identidade histórica e tradição da Galiza como o são, na parte espiritual, as lendas e a Santa Compaña. Onde quer que vades os encontrareis. Mais típico que os cruzeiros e a Santa Conpaña?... só se forem os hórreos. O que é a Santa Compaña?... não o vou dizer sob pena de me ver eu, ainda hoje, levando a cruz à frente de uma procissão de almas penadas.
Entramos em Cachafeiro e logo nos veio a memória Avelino e os Gaiteiros do Soutelo. Só mesmo o nome é comum. Se algo os ligava a esta aldeia perdeu-se no tempo, pois que Avelino, o pai e o avô, de Soutelo eram naturais. A aldeia estende-se pela PO-2205 abaixo. A pacatez advém-lhe do nome, ou este daquela. Um hórreo debaixo de um enorme castanheiro… um painel de azulejo com a Virgen Peregrina, na parede de uma casa… outro hórreo num quintal… o Bar Cachafeiro fechado… a Taberna do Panadeiro fechada… e saímos do Cachafeiro.
Ainda vou aqui a pensar: são 9:40h, mas que jeito tinha dado que estivesse aberto o bar ou a taberna. Saímos da estrada e, no início deste caminho de terra batida, encontramos este painel. Leio: «A Ruta das Pontes do Lérez é unha magnífica chave que abre as sendas da história e da natureza, neste fermoso concello de Forcarei, na Terra de Montes». Registo o achado e sigo atrás da Alice que já lá vai adiante. Chegamos juntos à Ponte de Gomail. No velho poste sinalizador está mais uma pequena placa indicando a direção do caminho. Passamos a velha ponte medieval sobre o Río Lérez. Um painel envelhecido ilumina-nos um pouco mais o conhecimento: «É unha das pontes de arco máis antigas desta zona (século XV)… Trátase dunha ponte construída em mampostería en forma de “chapacuña" de tres arcos… ». Fico a pensar — que raio quer dizer “chapacuña"?... mais abaixo lê-se «Por reste trazado discorría o camiño dos “arrieiros", os cales transportaban as suas prezadas mercadorías até Santiago de Compostela. Este percorrido foi recuperado recentemente como vía de peregrinación a través do “Camiño da Geira e dos Arrieiros"». Serena, como que descansando da agrura do caminho percorrido, a água desliza, refletindo sonhos, por baixo da ponte indiferente a quem sobre ela passa. Pousamos as mochilas e delas tiramos um pouco do que na véspera comprámos para nos servir de pequeno almoço. Comemos uma banana saboreando-a com paz, o murmúrio da água e o chilreio dos pássaros deste aprazível recanto.
Subimos!... e… continuamos a subir. Ainda nem um terço da jornada feita… que é isto?... lamentos?... vamos lá, toca a arribar. Há momentos assim. Isto não sou eu a falar, são os meus bastões. Coitados, estão fartos de me suportar.
Vamos silenciosos até no pensar. Ouve-se apenas o som ofegante da respiração. Passámos há pouco a Carballeira do Rei e agora, rodeados de beleza e ar purificador, subimos o Monte de Baladre. A urze rasteira embeleza o caminho. O mato é baixo, ponteado aqui e ali por pinheiros de pequeno porte há pouco plantados, ajuizando pelo lineado que o terreno mostra. Lá longe vê-se uma aldeia. É Liñares que, no vale do Rego do Leiro, vive do fruto das terras férteis e húmidas. Pisamos terrenos sagrados que, por mais perto do céu estarem, foram escolhidos por pré históricas gentes para sua derradeira morada. O silêncio rodeia-nos e o céu envolve-nos. Lá em baixo, à nossa esquerda onde a vista não enxerga, sei que existem três misteriosos lugares onde nem o tojo cresce; que alagam no inverno com mais água que a que em cima lhes cai e secam no verão mais depressa que se esperaria; que são redondos ou ovóides e que o povo deles fala com temor, contando lendas que de geração em geração vão passando. São as “Eiras dos Mouros”. Todas três se situam ao longo do Camiño do Corvo, paralelo a este que seguimos nós. Releio e transcrevo uma parte de um já relido texto: « Os pegureiros testemuñan que o gando se mostra remiso a pacer nas aciagas herbeiras e que os paxaros evitan sobrevoar o seu espazo aéreo e, se o fan, non ousan dar chío. Pola súa banda, os cazadores afirman non ter atopado nelas nin cagallas de coello nin furo de toupa nin rastro de lobo nin camisa de serpe; nin o xabaril vai meter alí o fociño! »
Entramos em A Mámoa por um espaço de altos, frondosos e velhos carvalhos. Os troncos destas antiquíssimas árvores são esteio de grossas heras que por elas trepam. De um e outro lado existem muros sem idade feitos de xisto que o musgo cobre e com um tipo de construção que visto eu nunca tinha. As pedras menores deitadas envolvem outras maiores, em forma de trapézio, numa aparência de pequenas portas fechadas. Ali à frente está o cruzeiro. Li que datará de 1801 mas foi recuperado, já que há muito se encontrava “descabezado". No entanto, a avaliar pela base e o fuste, merecia um melhor encabeçamento. À nossa frente uma casa antiga muito bem recuperada. Junto dela e por aqui espalhadas estão umas figuras, feitas de barrinhas de aço de construção pintadas de amarelo, ilustrando e direcionando “o camiño" que seguimos. Dou agora por mim a pensar no topónimo. A Mámoa de explicação não necessita. O que necessidade sinto é de saber qual delas (das mamoas, claro) é que motivou o nome, se este adveio por tantas haver ao redor ou se alguma aqui existiu e a aldeia foi edificada no “campo santo" dos antepassados neolíticos. Saímos da aldeia a subir pela estrada que às viaturas acesso lhe dá. Vou olhando para a imagem do GPS onde a localização da necrópole do “Campo das Mámoas", ou “Campo das Antas", se encontra assinalada pelo símbolo de “monumento”. Deverá ser por aqui à nossa esquerda, mas sem alguém que nos guie e elucide somos amblíopes. Andámos uns duzentos metros para lá da marca monumentosa e aqui está um grupo que não esperava encontrar. São arqueólogos e mexem a terra com um afã desusado nestes profissionais pacientes e metódicos. Metemos conversa mas só obtemos respostas breves. Esta pressa deve-se a causas de oposição à decisão publicada no mês passado de aqui instalar o campo eólico As Penizas. Há que justificar rapidamente a razão por que nada deve ser aqui instalado que possa pôr em causa a integridade desta jóia do neolítico com mais de 5000 anos.
Deixámos os arqueólogos com a sua tarefa desejando-lhes sorte. Que raio, com tantos montes à volta tinha que ser aqui?... bem, esqueçamos e sigamos. Caminhamos já ao lado da EP-7001 que liga Codeseda a Forcarei. Felizmente existe um carreirinho junto da estrada que evita que caminhemos pelo asfalto. Estamos cá em cima. Perdem-se os nossos olhos nas montanhas que nos rodeiam e voa a nossa imaginação para lá delas encontrando-se com gentes que para aqui foram desterradas. Que belos são estes lugares!
Sabucedo não fica longe. Lembramos a Rapa das Bestas e os selvagens cavalos que são recolhidos nestas serranias ao redor para a grande festa que em julho se celebrará. Tradição que mais de quatrocentos anos já tem. A doma ou “cortar das crinas" dos cavalos, entre as muitas dezenas que no curro se apertam, por corajosos cavaleiros que dominam as “bestas" (sem pejorativa intenção) de mãos nuas, enfrentando o perigo da luta entre machos que juntos se não toleram, será um espetáculo fero e de rara emoção que reporta à antiguidade e proto-história da Terra de Montes.
Descemos as encostas da Raposa por ancestrais caminhos entre carvalhos e muros de pedra solta que, cimentados pelo musgo, de pé se vão mantendo. Passámos o Barranco de Vesacartalla e vamos agora num apertado caminho que a passagem de gente, bestas e águas afundaram entre ribanceiras. Cortámos à esquerda e aparece-nos agora aqui algo que não esperávamos: “O Pelegrín". Com vários caminhos percorridos já me encontrei outras vezes com este “pelegrín", a primeira das quais foi na Expo92 em Sevilha, quando apresentado foi como “la mascota del Xacobeo de 1993”. Nasceu das mãos de Luís Carballo por encomenda da Xunta da Galícia para dar uma imagem mais moderna na promoção dos Caminhos de Santiago. Aqui, à sombra de uma fresca carvalheira, era imprevisível este encontro.
Chegamos a Vilaboa. Passamos sem que algo nos suscite a atenção nesta pequena aldeia.
Seguimos por estrada rural apertada entre prados… oh, bolas! Acaba de aterrar à minha frente um pássaro que vinha a esvoaçar com dificuldade. Apanho entre uma pedra e um tufo de erva. Não está ferido. Parece-me um tordo comum e ainda tem indícios de penugem, coitado do passarito. Lanço-o ao ar para o meio do prado. Pode ser que se safe.
Já vou aqui no encalço da Alice que do “drama" do passarito não se apercebeu. Vamos passar num túnel com a entrada enfeitada por doiradas giestas que passa por baixo da EP-7001 e tem heras penduradas a enfeitar a saída. Saímos e ladeia-nos agora um muro verde e… entramos no lugar da Portela junto a uma fonte. Aqui uma casa ajardinada tem um poste de granito com um azulejo colado, representando a vieira de Santiago. Nada de especial a não ser não me recordar de, neste caminho, ter visto alguma outra.
Agora que caminho é largo e desce suavemente, vamos conversando.
Chegamos a A Agrela… bem, não sei bem se é A Agrela ou se é A Grela porque em documentos oficiais sobre toponímica da Galiza aparece A Agrela mas em textos populares sobre este caminho aparece A Grela. Seja como for chegamos a esta pequena aldeia e aparece-nos logo aqui o Santuário de Nosa Señora de Guadalupe, ou será a Capilla de Nosa Señora de Guadalupe?... prefiro a primeira. Muito procurei eu informação sobre este templo. Pouco me foi revelado até encontrar informação exaustiva no site Codeseda.com que é da responsabilidade da Asociación Codeseda Viva. A construção é barroca, à semelhança de muitos outros na Galiza, datando de 1748, foi fundada por um presbítero de apelido Cabada e outros elementos da mesma família. Inicialmente era uma ermidazita sem grande importância mas, tantos e de tal ordem foram os donativos, que poucos anos passados se construiu o templo atual. Pelo aspeto envelhecido não mais deve ter sido mexido. Ao lado do escadório está… isso mesmo: um esperado mas humilde cruzeiro. Subimos. Num nicho, na fachada, sobre a porta, está a imagem da Virgem de aspeto muito mais novo que a igreja. As portas fechadas não permitem que o interior visitemos e, se a fé antiga que milagres fazia a tivéssemos nós, garantir que aquilo que no seguinte documentado texto leio se cumpria em benefício de nossas almas «Su Santidad Pio XI, ha concedido indulgencia plenaria y bendición apostólica “in artículo mortis” a todo el que comulgue en el altar de nuestra Señora de Guadalupe de A Grela.» A fé antiga não terei mas suficiente será para que, de cá de fora e da alma vinda, faça uma curtíssima mas sentida prece: Acompanha-nos Senhora nos caminhos descuidados da vida!
Contornamos a igreja e seguimos à sombra, oferta destes carvalhos que quase tão antigos quanto o templo serão. Subindo o Monte da Grela meditativos vamos pelo caminho que, dizem, seguia (ou segue ainda?) a imagem da Virxe da Grela no primeiro fim de semana de setembro para se encontrar, lá em cima na Cruz da Grela, com a “comitiva relixiosa" de Codeseda que, pelo Caminho da Costa, desaparecido devido à “Concentración Parcelaria”, trazia as imagens paroquiais, incluindo San Xurxo o padroeiro, para ali prestarem homenagem a Nosa Señora de Guadalupe. Li que, sendo o povo do mar, marinheiros e pescadores da “mariña galega", devotos de Nosa Señora de Guadalupe, também vinham em grande número para participar nesta homenagem e na romaria que se seguia. Então tinha lugar uma cerimónia que «consistía en que o santo patrón e demais santos fixeran a reverencia á Virxe anfitriónia e, mentres o sacerdote rezaba unhas oracións, os devotos axeonllábanse no chan en mostra de acatamento e veneración».
Seguimos o GPS mas não sei se no bom caminho continuamos, já que não me parece suficientemente largo para que por ele passe o cortejo da Virgem que à Grela sobe.
Cá estamos, no cimo do monte onde se cruzam os caminhos, e ali está a famosa Cruz da Grela. É talhada numa peça só, tem um braço mais comprido do que o outro, com rebaixo fileteado nas faces e plantada sobre uma rocha in situ. Tão simples e humilde, tão abandonada e tão rica de simbolismo e tradição. Quem diria?...
Sem ajoelhar, que muito para caminhar ainda há, prestamos nós também veneração à Virgem e vamos descendo o monte imaginando “o santo patrón e demais santos" fazendo a reverência à “Virxe anfitriónia". Perdoem este meu sorriso. Respeito as tradições e acredito que a fé destas gentes estará a anos luz daquela que me leva a rumar a Santiago, mas questiono-me sobre o folclore de que se revestem estas tradições e do seu significado e necessidade. Se o povo gosta e a sua fé alimenta, porque não?...
Suavizou a encosta e, de um e outro lado, os campos são de pasto. Passamos por Currelos. Além dois cavalos pastam mansamente. Estes não irão entrar na festa, são demasiado mansos.
Entramos em Codeseda. Se Braga, Berán, Ribadavia e Beariz foram importantes na recuperação, reconhecimento e certificação do Caminho da Geira e dos Arrieiros, Codeseda não o foi menos. O Caminho da Geira Romana desde Braga à Portela do Homem, já definido e bem delineado, foi apresentado por Francisco Sampaio, Presidente da Região de Turismo do Alto Minho, no “Encontro sobre os Caminhos Portugueses a Santiago”, realizado em abril de 1995, em Valença do Minho. No entanto, a parte espanhola não avançava. Com a criação do site codeseda.com em 2001, começa-se a reunir e divulgar aqui informação sobre a rota de romeiros de Santiago que por estas terras passavam. Em colaboração com codeseda.com alguns dirigentes do ”Museo do Pobo Estradense” investigam a passagem de peregrinos por A Estrada e publicam também o resultado das investigações em vários artigos. Depois A Coruña traça e publica o “mapa oficial" da rota através da província; seguem-se iniciativas em Ribadavia para estudar a passagem pela zona de O Ribeiro e, em 2009, nasce a associação “Camiño Xacobeo Miñoto Ribeiro - AMR2009”; dois anos mais tarde, por necessidades e ordem jurídica, codeseda.com funda a Associação Codeseda Viva. Em 2014 começa a colaboração entre a AMR2009 e Codeseda Viva para que seja definida uma rota exata em Espanha para o caminho que partia de Braga e atravessava O Ribeiro. Este caminho seria publicado no Wikiloc em 2015. Nesse ano fazia eu o Camiño de El Salvador, o meu primeiro caminho nas rotas de Santiago. No ano seguinte tive conhecimento da existência deste caminho. Dizia-se que o traçado ainda era confuso e que as dificuldades eram imensas. Mas a vontade de o percorrer crescia dentro de mim.
Ali está, entre centenários carvalhos, o Bar Pub Camiño da Geira. É local de referência e ponto de paragem “obrigatória" para os peregrinos que aqui passam. No edifício que muitos anos já sentiu passarem entramos e somos saudados com simpatia, quase com carinho, pela senhora por detrás do balcão. Pedimos duas “cañas". Vêm acompanhadas por fatias de “tortilla". Maricarmen diz chamar-se e pede-nos que assinemos o livro dos peregrinos. Diz que eu sou o “peregrino 272” e a Alice o 273. Pergunta se nos importamos que nos tire uma foto para publicar no site. Sentamo-nos cá fora a saborear a cerveja, a quietude do lugar e a sombra dos velhos carvalhos.
Deixo a minha companheira ainda a saborear a cerveja, a mochila fica também ali encostada à parede e, do peso aliviado, vou ali visitar a Igrexa de San Xurxo. Saboreando a paz e a sombra destes enormes carvalhos, testemunhas silenciosas e indiferentes do que sob as suas frondosas ramagens se vai passando, liberto o meu espírito e sigo assim leve ouvindo apenas o queixume rangente da areia sob as minhas botas. Observo, para lá do “Campo Santo, os campanários de um templo que nasceu românico e que as épocas, as intempéries e as gentes, que por ele passaram, foram modificando e deixando marcas tais que do original pouco resta. Contemplativo e um pouco absorto vou olhando alheado. Gostava de ter entrado mas… as portas estão fechadas. Dou mais uma olhadela aos impressionantes campanários.
(Texto incompleto por limitações do Wikiloc)
Waypoints
Religious site
1,038 ft
Capela de Nosa Señora da Consolación, o cruceiro de A Consolación e um sítio artístico
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