Caminho Primitivo - 11ª Etapa (Melide - Ponte de Ferreiros)
near Castro, Galicia (España)
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Itinerary description
Cedo seria quando saímos do albergue pois não encontrámos alguém que, como nós, tenha madrugado assim. Seguimos pela Rúa Mateo Segado Bugueiro, há pouco rebatizada, chamar-se-ia Rúa Calvo Sotelo. Melide tenta apagar da memória do povo os tempos franquistas eliminando os nomes que os possam recordar.
Os nossos passos ressoam na noite e, inconscientemente, tentamos caminhar em "bicos dos pés" para não incomodar quem ainda descansa. São 7:15h e estamos a chegar à Praza do Convento. À frente ergue-se a torre da Igrexa Parrochial de San Pedro ou Igrexa do Sancti Spiritus, único vestígio do antigo Convento do Sancti Spiritus pertencente aos frades Franciscanos da Ordem Terceira. Nos anos setenta do séc. XIV, Fr. Alonso de Mellid, beneficiando dos privilégios concedidos aos terciários regulares franciscanos nas cortes de Toro, funda o convento com o objetivo de criar uma comunidade religiosa e hospitalária que acolhesse e desse assistência a peregrinos, romeiros e pobres do "Camiño francés". Note-se que Caminho Francês seria qualquer um por onde peregrinavam os povos francos a Santiago. Atual e oficialmente o Caminho Francês é aquele que tem início em Sain Jean Pied de Port e corresponde à GR-65. Caminho Francês seria também aquele a que, oficialmente se decidiu chamar Caminho Primitivo e que terá sido o caminho seguido por Afonso II O Casto quando "peregrinou" a Compostela para "confirmar" o achado milagroso do túmulo do Apóstolo São Tiago Maior, decapitado em Jerusalém e supostamente trazido para Compostela pelo seus discípulos Teodoro e Atanasio e que o eremita Pelayo achou por milagrosa (e duvidosa) "sinalização divina" oito séculos mais tarde.
A igreja visitámo-la ontem. Não pudemos fazer a visita que queríamos porque dois jovens felizes celebravam o matrimónio e a igreja estava tão cheia que dificilmente se poderia entrar. Sabemos que foi reconstruída em 1498 a mando do primeiro conde de Monterrey, don Sancho Sánchez de Ulloa y Castro, em honra de sua mãe dona Inés de Castro, cujos restos mortais repousam lá dentro num túmulo colocado do lado do evangelho. Na reconstrução do templo foi utilizada a pedra do Castelo do Castro, destruído durante a "guerra Irmandiña" e que os Reis Católicos não permitiram que fosse reerguido.
À nossa direita encontra-se um edifício que nasceu "Hospital de Sancti Spíritus". Fundado em 1375 por Fernán López e Aldara González para assistir aos peregrinos das duas "rutas jacobeas", é agora o "Museo da Terra de Melide". O edifício terá sido reconstruído também pelo conde de Monterrey em 1502 e nessa altura teria 24 camas e em cada uma podiam dormir duas pessoas desde que do mesmo sexo, hábito comum na época. Este facto é objeto de antiga lenda que conta que uma mulher, querendo dormir com o seu homem, se disfarçou de varão e, tendo conseguido o intento, foi de manhã descoberta e sofreu por castigo a vergonha de ser rapada à máquina zero e o homem obrigado a beber uma mistela que lhe tirava a libido, mas parece que algo mais lhe tirou porque, segundo reza a estória, caiu gravemente enfermo. Hoje a fachada é de um edifício que conjuga a antiga com a moderna arquitetura numa simbiose agradável. O interior dizem que vale a pena ser visitado. Não tivemos nós oportunidade de o fazer porquanto ontem passámos demasiado tarde e hoje passamos demasiado cedo.
A Casa do Concello aparece aqui à direita. Mais uma fachada histórica. Digo fachada porque é só o que resta da "Obra Pía de San Antón" fundada pelo arcebispo D. Mateo Segage Bugueiro num palácio barroco do séc. XVII. Dizem nossos apontamentos que a igreja é a única que, na Galiza, combina o barroco com elementos da arquitetura pré colombiana idênticos aos utilizados nos templos maias e astecas. O ensejo de ver ao vivo não foi suficiente pelos mesmos motivos que nos impediram de visitar o museu. Registamos o pormenor do Escudo de Melide, destacado na fachada, porque, de tão semelhante ao do Vaticano, nos confundiu e criou curiosidade. Mas de curiosidade não passou.
Seguimos pela Rúa do Camiño de Ovedo, nome pelo qual era aqui conhecido o Caminho Primitivo que, alguns metros à frente, se encontra com o outro "camiño francés". As ruas desertas e a iluminação noturna criam à nossa passagem um ar de mistério que ainda não tínhamos experimentado. Seguimos pela Rúa Principal do casco antigo da vila sem possibilidade de apreciar as fachadas dos edifícios envoltas que estão no véu da noite onde a luz dos candeeiros não chega.
Saímos da zona urbana e o adensar da escuridão obriga-nos a colocar e ligar os frontais. Passamos à porta do cemitério quais almas penadas que por aqui vagueiam e concluímos que para trás já ficou "O Castelo". Verdade que castelo já não existe mas assim continuam a chamar os melidenses a esta colina plena de história. Um castro galaico da idade do ferro aqui existiu e manteve-se habitado já os romanos construíam à volta as suas "civitas". No início do séc. XIII a Mitra Compostelana fazia reconstruir sobre esse castro o castelo que aqui existia desde o séc. IX, tornando-o uma das suas principais fortalezas. Era o Castelo do Castro, destruído, como acima disse, durante as "Revueltas Irmandiñas". Em 1741 ergue-se no lugar a "Capela do Carme" a mando do capelão da Obra Pía de San Antón. Não vimos mas gostaríamos de ter visto este templo de arquitetura barroca do tipo compostelano. Muita coisa vai ficando por ver neste caminho...
Sebes de um e outro lado da estreita rua, que se afunda entre estes escuros muros, fazem a noite mais escura ainda.
Atravessámos a N-547. Se por ela seguíssemos a Santiago chegaríamos, por isso lhe chamam "Estrada de Santiago", caminhámos um pouco pelo asfalto da Estrada de Visantoña e chegamos agora a Santa Maria. Num largo lageado de grandes pedras um cruzeiro solitário vê-nos passar à luz amarelada dos candeeiros públicos. Passamos a Casa das Pedras e a casa onde viveu a "Aboa (avó) de Melide" assim chamada por ter falecido com mais de cem anos.
Estou junto à joia românica de Melide, a Igreja de Santa Maria. Quase que a não vejo porque, por qualquer motivo, não há iluminação. Tento registar com a câmara do telemóvel mas não consigo. Os meus companheiros afastam-se e eu desisto para ir atrás deles. Fica, uma vez mais, um sentimento de frustração. Eu sabia que passando a esta hora não iria visitar o seu interior mas contava com a iluminação para vê-la por fora.
Vou macambúzio, aborrecido comigo e o mau planeamento que fiz. Há coisas que se nos atravessam nos caminhos que não sabemos se voltamos a trilhar. Cada oportunidade perdida é uma pedra a menos na construção de quem somos. Sopro no meu pensar, aproximo-me dos meus companheiros e procuro iluminar mais um pouco o caminho que para a frente nos leva. Para trás e para os lados fica escuridão. Por cima, quando as nuvens deixam, o luar penetra timidamente por entre a folhagem dos carvalhos. Seguimos pelo Carballal por caminho arranjado. Numa encruzilhada as setas amarelas em dois marcos, encostados às ruínas do que uma casa terá sido, apontam em direções diferentes e deixam-nos na dúvida. Não contava com esta necessidade de decisão e detesto que aconteça porque algo importante poderá ser perdido qualquer que ela seja. O track no GPS decide por nós. Entramos numa densa floresta e a lua escondeu-se e só a luz dos frontais ilumina o chão que pisamos. Juntos e em silêncio chegamos a um riacho que temos de atravessar sobre umas grandes pedras colocadas à laia de ponte. É a Ponte das Penas sobre o Río Catasol. Diz-se que esta é a ponte mais fotografada desta etapa. Iluminámo-la de um e outro lado para que as senhoras a passassem, simpatia de cavalheiros. Foi um momento de magia que a noite enalteceu. Adentramo-nos na floresta com mais alegria na alma. De quando em vez a lua encontra uma brecha na folhagem e a luz dança entre as árvores encantando o caminho e deixando um sorriso no nosso coração. Este caminhar noturno na floresta está a ser uma experiência extraordinária quase me fazendo esquecer o que para trás ficou por ver. Tão poucos quilómetros andados e tão diversos foram já os sentimentos experimentados.
Desperto dos meus pensamentos com a cabeça "armada" de um touro demasiado perto da minha. Pacífico olha para nós, talvez incrédulo... talvez surpreso... ou apenas divertido?... «que doidos serão estes que por aqui caminham quando nem nós ainda nos levantámos?». A ocidente desperta a aurora em quentes tons. Promessa de dia quente seria não fora o carregado das nuvens que filtram a luz. A manada descansa indiferente no prado enquanto passamos afoitos e insaciáveis de novos horizontes e experiências.
Estamos na "Taberna de Parabispo". J.A. sabia da sua existência e vinha desejoso de aqui chegar. Mal acabamos de pousar as mochilas nos bancos orvalhados da "terraza" e chegam outros peregrinos. Apressamo-nos a fazer os pedidos no nosso castelhano macarrónico quando a resposta da senhora que aqui serve soa em perfeito português. Portuguesa é de facto e diz-nos como aqui chegou. Uma história como muitas de portugueses espalhados pelo mundo. Com a barriga e as mochilas recheadas saímos para enfrentar o caminho. O dia despertou e dá para ver bem o Fiat 600 (el mercedes pequeño), vedeta das objetivas dos telemóveis dos peregrinos que por aqui passam, estacionado no parque de merendas do "Pequeño Oásis" que vende frutas e águas aos peregrinos passantes.
O caminho é largo e cuidado seguindo entre carvalhos ainda que o piso seja um pouco duro. Tenho que sugerir aos autarcas que tão cuidadosos são que deixem a terra dos caminhos sem outro coberto ou então cubram-nos de "tartan". Que tal a ideia?...
Passamos a velha Ponte do Rego de Valverde e assim deixamos o concelho de Melide e entramos no de Arzúa. Passámos Peroxa e entramos agora em Boente. O Albergue "El Alemán" junto ao caminho é um dos muitos que iremos encontrar daqui para a frente. A junção dos dois caminhos em Melide trás um acréscimo significativo de peregrinos nestas etapas finais.
Na confluência da estrada por onde seguimos e a N-547 encontramos um velho cruzeiro e uma fonte de pia redonda. É a Fonte da Saleta cuja água milagrosa se diz que mata a sede, faz esquecer as mágoas, repõe o apetite e cura as chagas dos pés dos peregrinos que ali os lavarem. Sou homem de pouca fé mas ali lavaria os pés houvesse quem me comprovasse tais milagres. Um, todavia, confirmo porque experimentei: mata a sede.
Atravessamos a N-547 e dirigimo--nos à Igrexa de Santiago. Data do séc.XII a construção da igreja original românica de que poucas partes restam. São 9:20h mas o relógio na fachada da igreja marca 11:50h. Na lateral do lado da estrada há dois outros relógios: o mecânico que marca 9:15h e o de sol que está certíssimo. Entramos na igreja. O padre está na árdua tarefa de carimbar credenciais. Enquanto uns ficam na fila com todas as 4 credenciais eu passeio-me pela igreja. No retábulo sobressai a imagem de Santiago Peregrino num nicho por detrás do sacrário. Por baixo estão dois bastões cruzados sob uma vieira. Santiago no nosso caminho. Que caminhe connosco.
Saímos da igreja por lajeada praça que tem um monolito de pedra espetado no chão. Se algum significado tem esta agulhada pedra apontando o céu ficamos sem o conhecer.
Há algum tempo que vimos atravessando brenhas e campos de cultivo por caminho limpo e largo que nos permite que conversemos os quatro porque a paisagem, ainda que bela, não apresenta motivos de realce. Os carvalhos são, na maior parte do tempo, quem o caminho nos sombreia.
Depois de termos descido ao vale do Boente e sobre o rio passado, há já algum tempo que vimos a subir e connosco sobe o cansaço também. Aqui uma bifurcação no caminho com sinalização para ambos os lados. Com esta contava já por ter lido a polémica que gerou nas gentes dos povoados a montante. A opção tomada foi exatamente pelo "Camino Complementario". E aqui vamos entre um campo de milho e um pinhal rumo a Pumariño. A subida cansa mas, pelo que vi no GPS, a alternativa cansaria mais porque mais alto subiria. Nada neste "complementario", para além da maior ruralidade e menor cota de subida, justifica este desvio; não há pontos de interesse naturais, históricos ou outros; Pumariño não passa de uma aldeia rural com não mais que meia dúzia de casas e outros tantos estábulos; o caminho rural não apresenta paisagens diferenciadas. Foi um quilómetro e meio de nada mais que isso e... chegamos a Pedrido onde nos unimos ao itinerário normal. A quantidade de peregrinos fez-nos lembrar que não reservámos lugares para pernoitar hoje. Ainda que pensemos que a maioria desta gente ficará em Arzúa é hora de reservar lugar no Albergue A Ponte de Ferreiros.
Só há 2 lugares. Reservamo-los para as nossos companheiros e nós ( eu e a M.A. ) decidimos fazer mais alguns quilómetros hoje e tentar pernoitar em Salceda onde há vários albergues e pensões. Não conseguimos contatar com nenhum dos albergues. Decidimos, eu e a M.A, avançar mais depressa. Despedimo-nos com a promessa de nos encontrarmos amanhã e cá vamos em passo estugado. A subida ao Coto de Doroña é dura para quem vem depressa, ainda que esta ladeira tenha pouco a ver com aquelas que subimos nas Astúrias. Começamos a descer para o vale do Iso. Passamos o bar do Manolo. Ninguém na esplanada. Parece que está fechado. Continuemos.
Chegamos à ponte medieval de Ribadiso.
Tocou o telemóvel. Era do "Albergue A Ponte" de Ferreiros a perguntar se continuávamos interessados em mais duas camas. Pronto, está resolvido o nosso problema de alojamento para esta noite. Enquanto eu fotografo a ponte a M.A. telefona aos nossos companheiros a dizer-lhes que esperamos por eles aqui e porquê. Aqui juntinho, nuns degraus que descem para a ribeira, sento-me e descanso. Atrás de mim, numas casas de pedra com cobertura de telha, existe um albergue de peregrinos. Na idade média eram estas casas o Hospital de San Antonio de Ribadiso, fundado entre os séculos XIII e XIV e entregue às Irmãs da Ordem Terceira de São Francisco do mosteiro de Santa Cristina da Pena de Santiago de Compostela. Aparece no séc. XVI na posse da "Confradía dos Plateros de Santiago" (Confraria dos Ourives) que o arrenda a um particular na condição «...que acoja a los peregrinos que al dicho ospital vinieren e les haga touda caridad.» Durante séculos deu apoio e alojamento a milhares de peregrinos até ao abandono no séc XX. Foi então requalificado e, a partir de 1993, assume a vocação multicentenária de acolher quem por estes caminhos ruma a Santiago.
Passa o peregrino irlandês já nosso conhecido, o tal que comeu tortilha quando o que queria era tomate com queijo fresco. Vai só e conta-nos que a esposa se lesionou e foi de táxi para Santiago. Ele vai tentar chegar lá a pé ainda hoje. Valente!... desejamos bom caminho e ele diz-nos ainda que estranhou ver os nossos companheiros sozinhos lá atrás. Que estamos à espera deles lhe dizemos e assim nos despedimos.
Juntaram-se a nós aqueles que esperávamos e eis que aqui vamos de novo caminhando a oito pés.
Em silêncio temos vindo, talvez meditando, talvez apreciando os longos "maizales" que se destinam mais a forragem que a farinha porque mais barata vem esta de leste que fabricá-la por cá, mas agora há algo que nos capta a atenção. Vamos juntinho à N-547. De um ou ambos os lados uma sebe bem cuidada limita o caminho preparado com esmero para passagem de peregrinos. Mas não é a sebe ou o cuidado caminho o objeto da nossa atenção, é a quantidade inusitada de fotógrafos com grandes e boas câmaras que enchameiam o percurso. De que se trata?... decerto que não estão à nossa espera porque não notamos interesse especial à nossa passagem. De um momento para o outro todas as câmaras apontam para alguém que atrás vem correndo. Então alguém de entre nós recorda que começou dois dias antes um evento de uma marca de refrigerantes/tonificantes conhecida pelos eventos radicais que realiza/patrocina. Três dias de Oviedo a Santiago pelo "Camino Primitivo", é de loucos!... passa por nós o atleta. Olhamos-lhe para os pés... não, não têm asas. Continuamos caminho e passa agora outro atleta. Nas costas tem o nome de uma cidade portuguesa. Este é português, força! exclamo. A resposta vem de braços no ar e os vês de vitória dos indicadores e médios levantados.
Aparcámos alguns minutos junto à Pensión O Retiro por necessidades fisiológicas e aqui vamos agora entrando em Arzúa. Esta é a "terra do queixo" mas sobretudo o "Pórtico de Compostela" e se disso tivéssemos dúvidas um enorme mural publicitário com um peregrino de bastão e mochila com elas acabaria. Aqui se junta mais um dos Camiños de Santiago: a variante do "Camino del Norte" desde Boimorto.
Na subida da Avenida de Lugo passamos por imensas indicações de albergues, pensões e hosteis que nos dão a dimensão da importância do "Camino" nesta vila. Os cafés com esplanada na rua estão cheios de peregrinos. Aqui, no passeio, uma escultura em granito em forma prismática encimada pela cabeça enchapelada de Santiago, que diz "Camiño do Peregrino - Arzúa". É obra de Antonio Gago. Que dúvidas poderão restar ainda sobre a vocação Jacobea desta vila?..
Chegamos a um pequeno mas bem cuidado jardim com muita gente sentada desfrutando da sombra das árvores. Uma escultura em mármore exibe quatro vieiras sob o nome da vila. Em cima duas mãos sustentam um "queixo"... o quê?... não é "queixo"?... ah é queijo? tá bem, mas eu gosto do "queixo de Arzúa-Ulloa".
Olho para o GPS para ver a direção a tomar e... bolas!... devíamos ter cortado à esquerda um bom bocado abaixo. Distraídos que vínhamos não demos pela sinalização. Traço mentalmente um percurso que nos leve de novo ao "camino" sem ter que voltar para trás e... toca a andar. Este desvio tirou do nosso caminho a Capela da Madalena, templo gótico do séc XIV, atualmente centro de exposições e museu. Foi mais uma que passou. Paciência. No entanto, se houvéramos seguido o caminho sinalizado não teríamos visto este belo jardim onde se exibe a obra "Os Gandeiros" de Fernando García Blanco representando a força do potencial ganadeiro da região. Tão pouco teriamos passado à frente da Casa do Concello. Pronto, nem tudo foram perdas.
Saímos de Arzúa reencontrando-nos com o "camiño" junto de um cruzeiro num lajeado que parece atravessar um jardim de que aquela casa de xisto é um planta outonal de muitos outonos passados.
Descemos, por largo caminho de terra, para o vale. Passámos pela Fonte dos Franceses e agora a água límpida no Rego Vello corre a nosso lado refletindo celestes coloridos e cantando baixinho melodias de embalar.
Mil vezes descemos outras tantas subimos e As Barrosas levam-nos ladeira acima. Aqui paramos porque neste caminho alguém para sempre parou também. A placa recorda o padre "Moncho" que tão jovem no "Camino" se finou. «Las huellas del Señor no son invisibles» se lê no epitáfio, diria eu que tão pouco o são aquelas deixadas por quem faz a vida dos outros mais feliz.
Os desígnios insondáveis de Deus ocuparam o meu íntimo por largos momentos. Interrompe o meu pensar os passos corridos de uma jovem atleta que em dois dias correu o que nós andámos em onze. Sorrimos mutuamente e não são precisas palavras mas "ultreya" saiu-me da alma e verbalizou-se num desejo sincero. Porque será que a vida implica competição?... padre "Moncho" com quem competes agora?...
Aplanou-se o caminho entre o robledo. Alcança-nos uma itálica peregrina que sempre víramos no grupo dos catalães. Conversamos. O grupo decidiu para hoje um dia de meditação e encontro pessoal. Nunca se conheceram senão no Camino mas tomam decisões de grupo. Não se trata de decisões individuais mas de um grupo espontâneo e heterogéneo. Admirável. Sem por isso ter dado, distanciamo-nos dos meus companheiros. Num desabafo de alma humedecem-se os enormes olhos desta jovem a quem nada parece faltar. Nos recantos do ser, no fundo da alma, armazenam-se recordações que, por muito que recalquemos, acabam por assomar à superfície da nossa sensibilidade. Em perfeito castelhano, como sempre a ouvi falar, mas com voz embargada pela tristeza, me diz «voy a llorar». «Si, te hara bien lhorar» foi o que me saiu. Porque raio tenho tanta dificuldade em lidar com a tristeza dos outros?... Silenciámo-nos. Eu retardei o passo com a desculpa de me estar a afastar dos meus companheiros. A jovem peregrina continuou tão depressa quanto o fluir dos seus sentimentos em campo de intimidade que não quis eu que me fosse revelado. Momentos do caminho que me tocam o coração, me toldam o discernimento e me deixam calado.
A sombra dos carvalhos neste belo caminho apaziguam o meu espírito. Não sei porquê mas dei por nós quatro uns dos outros distanciados. Pouco a pouco aproximamo-nos e juntos seguíamos quando nos alcança Juan M. e, sorrindo, nos diz — Hola pareja de cuatro.
Sigo na conversa com Juan M. em passo normal. Falamos das experiências deste e de outros caminhos, falamos da terra onde vivemos e da família que amamos e, falando, melhor nos conhecemos. Num quarto de hora caminhando juntos tanto dissemos e nos afastámos que tendo ficado mais perto um do outro pela conversa mais longe ficámos dos meus companheiros pela distância. Agora estou a aguardar que cheguem enquanto Juan se afasta.
Por bosques de carvalhos chegámos a Pregontoño. Diz-se que por tanto aqui perguntarem, peregrinos e romeiros, que caminho seguir a terra adquiriu o nome.
Entre Pergontoño e Peroxa continuamos a subir mas agora entre grandes prados. De Peroxa nada a dizer senão que é mais outra aldeia ganadeira com vacas e mais vacas nos prados pastando. Começamos a descer. O caminho entra de novo num belo carvalhal. O caminho é agora de terra serpenteando dentro de um frondoso carvalhal. Passamos o Rego do Ladrón com um fiozinho de água que mansamente corre para sul. Aqui, num espaço mais aberto, o caminho contorna por um e outro lado uma sumptuosa árvore. Ao lado dois bancos para quem queira descansar.
Eis-no agora a passar Taberna Velha. Da dita não vi vestígios. De velhice ter-se-á finado. Mas tem uma coisa admirável: "El Muro de la Sabiduria". «La sabiduría requiere humildad y una mente inquisitiva: la humildad nos hace reconocer nuestra ignorancia con respecto a ciertos asuntos; una mente inquisitiva nos ayuda a comprenderlos mejor » lê-se no primeiro quadro e eu mastigo estas frases para digerir mais tarde. Continuemos.
Atravessamos um viaduto sobre a A-54 que tem duas faixas: uma é pedonal. Normal é encontrar passeios de ambos os lados, mas aqui não. Aqui previu-se a grande afluência de peregrinos e destinou-se-lhes uma faixa inteirinha separada e protegida por guarda forte em ferro da que é destinada às viaturas. Curioso é ainda que alguém decidiu "enfeitar" esse separador com uma coleção variada de autocolantes.
Passamos em A Calzada. Se o topónimo é ou foi apropriado, não será à estrada de macadame por onde vamos que se deverá. Uma casa rural reconstruída tem um hórreo de um tipo diverso dos que vimos até aqui. Há dias fiz uma pesquisa sobre hórreos quando constatei que os galegos eram muito diferentes dos asturianos. Em horreosdegalicia.com encontrei muita informação por isso posso dizer que este é do tipo "O Piso".
Para trás ficou A (des)Calzada e passámos o Rego Lengüello e agora seguimos num bosque de encantos. Encantam-nos os velhos musgados carvalhos que nos abraçam, encanta-nos o pendulado das heras nos troncos velhos, encanta-nos o restolhar das folhas secas que vamos pisando, encanta-nos o silêncio, encanta-nos o chilreio de um ou outro pássaro, encanta-nos a sensação de paz no nosso íntimo e... encanta-nos saber que a cada passo nos aproximamos do nosso destino.
Um caminho lageado aperta-nos entre velhos muros de velhas casas. Um hórreo estrangeiro lá em cima na Casa do Hórreo. Numa curva do caminho aparece um achado: a Casa da Tia Dolores com todas as garrafas que ali se esvaziaram penduradas por tudo o que é sítio. São milhares! que grandes bêbados.
Andamos mais um pouco e eis que chegamos ao Albergue. Haja Deus!
Os nossos passos ressoam na noite e, inconscientemente, tentamos caminhar em "bicos dos pés" para não incomodar quem ainda descansa. São 7:15h e estamos a chegar à Praza do Convento. À frente ergue-se a torre da Igrexa Parrochial de San Pedro ou Igrexa do Sancti Spiritus, único vestígio do antigo Convento do Sancti Spiritus pertencente aos frades Franciscanos da Ordem Terceira. Nos anos setenta do séc. XIV, Fr. Alonso de Mellid, beneficiando dos privilégios concedidos aos terciários regulares franciscanos nas cortes de Toro, funda o convento com o objetivo de criar uma comunidade religiosa e hospitalária que acolhesse e desse assistência a peregrinos, romeiros e pobres do "Camiño francés". Note-se que Caminho Francês seria qualquer um por onde peregrinavam os povos francos a Santiago. Atual e oficialmente o Caminho Francês é aquele que tem início em Sain Jean Pied de Port e corresponde à GR-65. Caminho Francês seria também aquele a que, oficialmente se decidiu chamar Caminho Primitivo e que terá sido o caminho seguido por Afonso II O Casto quando "peregrinou" a Compostela para "confirmar" o achado milagroso do túmulo do Apóstolo São Tiago Maior, decapitado em Jerusalém e supostamente trazido para Compostela pelo seus discípulos Teodoro e Atanasio e que o eremita Pelayo achou por milagrosa (e duvidosa) "sinalização divina" oito séculos mais tarde.
A igreja visitámo-la ontem. Não pudemos fazer a visita que queríamos porque dois jovens felizes celebravam o matrimónio e a igreja estava tão cheia que dificilmente se poderia entrar. Sabemos que foi reconstruída em 1498 a mando do primeiro conde de Monterrey, don Sancho Sánchez de Ulloa y Castro, em honra de sua mãe dona Inés de Castro, cujos restos mortais repousam lá dentro num túmulo colocado do lado do evangelho. Na reconstrução do templo foi utilizada a pedra do Castelo do Castro, destruído durante a "guerra Irmandiña" e que os Reis Católicos não permitiram que fosse reerguido.
À nossa direita encontra-se um edifício que nasceu "Hospital de Sancti Spíritus". Fundado em 1375 por Fernán López e Aldara González para assistir aos peregrinos das duas "rutas jacobeas", é agora o "Museo da Terra de Melide". O edifício terá sido reconstruído também pelo conde de Monterrey em 1502 e nessa altura teria 24 camas e em cada uma podiam dormir duas pessoas desde que do mesmo sexo, hábito comum na época. Este facto é objeto de antiga lenda que conta que uma mulher, querendo dormir com o seu homem, se disfarçou de varão e, tendo conseguido o intento, foi de manhã descoberta e sofreu por castigo a vergonha de ser rapada à máquina zero e o homem obrigado a beber uma mistela que lhe tirava a libido, mas parece que algo mais lhe tirou porque, segundo reza a estória, caiu gravemente enfermo. Hoje a fachada é de um edifício que conjuga a antiga com a moderna arquitetura numa simbiose agradável. O interior dizem que vale a pena ser visitado. Não tivemos nós oportunidade de o fazer porquanto ontem passámos demasiado tarde e hoje passamos demasiado cedo.
A Casa do Concello aparece aqui à direita. Mais uma fachada histórica. Digo fachada porque é só o que resta da "Obra Pía de San Antón" fundada pelo arcebispo D. Mateo Segage Bugueiro num palácio barroco do séc. XVII. Dizem nossos apontamentos que a igreja é a única que, na Galiza, combina o barroco com elementos da arquitetura pré colombiana idênticos aos utilizados nos templos maias e astecas. O ensejo de ver ao vivo não foi suficiente pelos mesmos motivos que nos impediram de visitar o museu. Registamos o pormenor do Escudo de Melide, destacado na fachada, porque, de tão semelhante ao do Vaticano, nos confundiu e criou curiosidade. Mas de curiosidade não passou.
Seguimos pela Rúa do Camiño de Ovedo, nome pelo qual era aqui conhecido o Caminho Primitivo que, alguns metros à frente, se encontra com o outro "camiño francés". As ruas desertas e a iluminação noturna criam à nossa passagem um ar de mistério que ainda não tínhamos experimentado. Seguimos pela Rúa Principal do casco antigo da vila sem possibilidade de apreciar as fachadas dos edifícios envoltas que estão no véu da noite onde a luz dos candeeiros não chega.
Saímos da zona urbana e o adensar da escuridão obriga-nos a colocar e ligar os frontais. Passamos à porta do cemitério quais almas penadas que por aqui vagueiam e concluímos que para trás já ficou "O Castelo". Verdade que castelo já não existe mas assim continuam a chamar os melidenses a esta colina plena de história. Um castro galaico da idade do ferro aqui existiu e manteve-se habitado já os romanos construíam à volta as suas "civitas". No início do séc. XIII a Mitra Compostelana fazia reconstruir sobre esse castro o castelo que aqui existia desde o séc. IX, tornando-o uma das suas principais fortalezas. Era o Castelo do Castro, destruído, como acima disse, durante as "Revueltas Irmandiñas". Em 1741 ergue-se no lugar a "Capela do Carme" a mando do capelão da Obra Pía de San Antón. Não vimos mas gostaríamos de ter visto este templo de arquitetura barroca do tipo compostelano. Muita coisa vai ficando por ver neste caminho...
Sebes de um e outro lado da estreita rua, que se afunda entre estes escuros muros, fazem a noite mais escura ainda.
Atravessámos a N-547. Se por ela seguíssemos a Santiago chegaríamos, por isso lhe chamam "Estrada de Santiago", caminhámos um pouco pelo asfalto da Estrada de Visantoña e chegamos agora a Santa Maria. Num largo lageado de grandes pedras um cruzeiro solitário vê-nos passar à luz amarelada dos candeeiros públicos. Passamos a Casa das Pedras e a casa onde viveu a "Aboa (avó) de Melide" assim chamada por ter falecido com mais de cem anos.
Estou junto à joia românica de Melide, a Igreja de Santa Maria. Quase que a não vejo porque, por qualquer motivo, não há iluminação. Tento registar com a câmara do telemóvel mas não consigo. Os meus companheiros afastam-se e eu desisto para ir atrás deles. Fica, uma vez mais, um sentimento de frustração. Eu sabia que passando a esta hora não iria visitar o seu interior mas contava com a iluminação para vê-la por fora.
Vou macambúzio, aborrecido comigo e o mau planeamento que fiz. Há coisas que se nos atravessam nos caminhos que não sabemos se voltamos a trilhar. Cada oportunidade perdida é uma pedra a menos na construção de quem somos. Sopro no meu pensar, aproximo-me dos meus companheiros e procuro iluminar mais um pouco o caminho que para a frente nos leva. Para trás e para os lados fica escuridão. Por cima, quando as nuvens deixam, o luar penetra timidamente por entre a folhagem dos carvalhos. Seguimos pelo Carballal por caminho arranjado. Numa encruzilhada as setas amarelas em dois marcos, encostados às ruínas do que uma casa terá sido, apontam em direções diferentes e deixam-nos na dúvida. Não contava com esta necessidade de decisão e detesto que aconteça porque algo importante poderá ser perdido qualquer que ela seja. O track no GPS decide por nós. Entramos numa densa floresta e a lua escondeu-se e só a luz dos frontais ilumina o chão que pisamos. Juntos e em silêncio chegamos a um riacho que temos de atravessar sobre umas grandes pedras colocadas à laia de ponte. É a Ponte das Penas sobre o Río Catasol. Diz-se que esta é a ponte mais fotografada desta etapa. Iluminámo-la de um e outro lado para que as senhoras a passassem, simpatia de cavalheiros. Foi um momento de magia que a noite enalteceu. Adentramo-nos na floresta com mais alegria na alma. De quando em vez a lua encontra uma brecha na folhagem e a luz dança entre as árvores encantando o caminho e deixando um sorriso no nosso coração. Este caminhar noturno na floresta está a ser uma experiência extraordinária quase me fazendo esquecer o que para trás ficou por ver. Tão poucos quilómetros andados e tão diversos foram já os sentimentos experimentados.
Desperto dos meus pensamentos com a cabeça "armada" de um touro demasiado perto da minha. Pacífico olha para nós, talvez incrédulo... talvez surpreso... ou apenas divertido?... «que doidos serão estes que por aqui caminham quando nem nós ainda nos levantámos?». A ocidente desperta a aurora em quentes tons. Promessa de dia quente seria não fora o carregado das nuvens que filtram a luz. A manada descansa indiferente no prado enquanto passamos afoitos e insaciáveis de novos horizontes e experiências.
Estamos na "Taberna de Parabispo". J.A. sabia da sua existência e vinha desejoso de aqui chegar. Mal acabamos de pousar as mochilas nos bancos orvalhados da "terraza" e chegam outros peregrinos. Apressamo-nos a fazer os pedidos no nosso castelhano macarrónico quando a resposta da senhora que aqui serve soa em perfeito português. Portuguesa é de facto e diz-nos como aqui chegou. Uma história como muitas de portugueses espalhados pelo mundo. Com a barriga e as mochilas recheadas saímos para enfrentar o caminho. O dia despertou e dá para ver bem o Fiat 600 (el mercedes pequeño), vedeta das objetivas dos telemóveis dos peregrinos que por aqui passam, estacionado no parque de merendas do "Pequeño Oásis" que vende frutas e águas aos peregrinos passantes.
O caminho é largo e cuidado seguindo entre carvalhos ainda que o piso seja um pouco duro. Tenho que sugerir aos autarcas que tão cuidadosos são que deixem a terra dos caminhos sem outro coberto ou então cubram-nos de "tartan". Que tal a ideia?...
Passamos a velha Ponte do Rego de Valverde e assim deixamos o concelho de Melide e entramos no de Arzúa. Passámos Peroxa e entramos agora em Boente. O Albergue "El Alemán" junto ao caminho é um dos muitos que iremos encontrar daqui para a frente. A junção dos dois caminhos em Melide trás um acréscimo significativo de peregrinos nestas etapas finais.
Na confluência da estrada por onde seguimos e a N-547 encontramos um velho cruzeiro e uma fonte de pia redonda. É a Fonte da Saleta cuja água milagrosa se diz que mata a sede, faz esquecer as mágoas, repõe o apetite e cura as chagas dos pés dos peregrinos que ali os lavarem. Sou homem de pouca fé mas ali lavaria os pés houvesse quem me comprovasse tais milagres. Um, todavia, confirmo porque experimentei: mata a sede.
Atravessamos a N-547 e dirigimo--nos à Igrexa de Santiago. Data do séc.XII a construção da igreja original românica de que poucas partes restam. São 9:20h mas o relógio na fachada da igreja marca 11:50h. Na lateral do lado da estrada há dois outros relógios: o mecânico que marca 9:15h e o de sol que está certíssimo. Entramos na igreja. O padre está na árdua tarefa de carimbar credenciais. Enquanto uns ficam na fila com todas as 4 credenciais eu passeio-me pela igreja. No retábulo sobressai a imagem de Santiago Peregrino num nicho por detrás do sacrário. Por baixo estão dois bastões cruzados sob uma vieira. Santiago no nosso caminho. Que caminhe connosco.
Saímos da igreja por lajeada praça que tem um monolito de pedra espetado no chão. Se algum significado tem esta agulhada pedra apontando o céu ficamos sem o conhecer.
Há algum tempo que vimos atravessando brenhas e campos de cultivo por caminho limpo e largo que nos permite que conversemos os quatro porque a paisagem, ainda que bela, não apresenta motivos de realce. Os carvalhos são, na maior parte do tempo, quem o caminho nos sombreia.
Depois de termos descido ao vale do Boente e sobre o rio passado, há já algum tempo que vimos a subir e connosco sobe o cansaço também. Aqui uma bifurcação no caminho com sinalização para ambos os lados. Com esta contava já por ter lido a polémica que gerou nas gentes dos povoados a montante. A opção tomada foi exatamente pelo "Camino Complementario". E aqui vamos entre um campo de milho e um pinhal rumo a Pumariño. A subida cansa mas, pelo que vi no GPS, a alternativa cansaria mais porque mais alto subiria. Nada neste "complementario", para além da maior ruralidade e menor cota de subida, justifica este desvio; não há pontos de interesse naturais, históricos ou outros; Pumariño não passa de uma aldeia rural com não mais que meia dúzia de casas e outros tantos estábulos; o caminho rural não apresenta paisagens diferenciadas. Foi um quilómetro e meio de nada mais que isso e... chegamos a Pedrido onde nos unimos ao itinerário normal. A quantidade de peregrinos fez-nos lembrar que não reservámos lugares para pernoitar hoje. Ainda que pensemos que a maioria desta gente ficará em Arzúa é hora de reservar lugar no Albergue A Ponte de Ferreiros.
Só há 2 lugares. Reservamo-los para as nossos companheiros e nós ( eu e a M.A. ) decidimos fazer mais alguns quilómetros hoje e tentar pernoitar em Salceda onde há vários albergues e pensões. Não conseguimos contatar com nenhum dos albergues. Decidimos, eu e a M.A, avançar mais depressa. Despedimo-nos com a promessa de nos encontrarmos amanhã e cá vamos em passo estugado. A subida ao Coto de Doroña é dura para quem vem depressa, ainda que esta ladeira tenha pouco a ver com aquelas que subimos nas Astúrias. Começamos a descer para o vale do Iso. Passamos o bar do Manolo. Ninguém na esplanada. Parece que está fechado. Continuemos.
Chegamos à ponte medieval de Ribadiso.
Tocou o telemóvel. Era do "Albergue A Ponte" de Ferreiros a perguntar se continuávamos interessados em mais duas camas. Pronto, está resolvido o nosso problema de alojamento para esta noite. Enquanto eu fotografo a ponte a M.A. telefona aos nossos companheiros a dizer-lhes que esperamos por eles aqui e porquê. Aqui juntinho, nuns degraus que descem para a ribeira, sento-me e descanso. Atrás de mim, numas casas de pedra com cobertura de telha, existe um albergue de peregrinos. Na idade média eram estas casas o Hospital de San Antonio de Ribadiso, fundado entre os séculos XIII e XIV e entregue às Irmãs da Ordem Terceira de São Francisco do mosteiro de Santa Cristina da Pena de Santiago de Compostela. Aparece no séc. XVI na posse da "Confradía dos Plateros de Santiago" (Confraria dos Ourives) que o arrenda a um particular na condição «...que acoja a los peregrinos que al dicho ospital vinieren e les haga touda caridad.» Durante séculos deu apoio e alojamento a milhares de peregrinos até ao abandono no séc XX. Foi então requalificado e, a partir de 1993, assume a vocação multicentenária de acolher quem por estes caminhos ruma a Santiago.
Passa o peregrino irlandês já nosso conhecido, o tal que comeu tortilha quando o que queria era tomate com queijo fresco. Vai só e conta-nos que a esposa se lesionou e foi de táxi para Santiago. Ele vai tentar chegar lá a pé ainda hoje. Valente!... desejamos bom caminho e ele diz-nos ainda que estranhou ver os nossos companheiros sozinhos lá atrás. Que estamos à espera deles lhe dizemos e assim nos despedimos.
Juntaram-se a nós aqueles que esperávamos e eis que aqui vamos de novo caminhando a oito pés.
Em silêncio temos vindo, talvez meditando, talvez apreciando os longos "maizales" que se destinam mais a forragem que a farinha porque mais barata vem esta de leste que fabricá-la por cá, mas agora há algo que nos capta a atenção. Vamos juntinho à N-547. De um ou ambos os lados uma sebe bem cuidada limita o caminho preparado com esmero para passagem de peregrinos. Mas não é a sebe ou o cuidado caminho o objeto da nossa atenção, é a quantidade inusitada de fotógrafos com grandes e boas câmaras que enchameiam o percurso. De que se trata?... decerto que não estão à nossa espera porque não notamos interesse especial à nossa passagem. De um momento para o outro todas as câmaras apontam para alguém que atrás vem correndo. Então alguém de entre nós recorda que começou dois dias antes um evento de uma marca de refrigerantes/tonificantes conhecida pelos eventos radicais que realiza/patrocina. Três dias de Oviedo a Santiago pelo "Camino Primitivo", é de loucos!... passa por nós o atleta. Olhamos-lhe para os pés... não, não têm asas. Continuamos caminho e passa agora outro atleta. Nas costas tem o nome de uma cidade portuguesa. Este é português, força! exclamo. A resposta vem de braços no ar e os vês de vitória dos indicadores e médios levantados.
Aparcámos alguns minutos junto à Pensión O Retiro por necessidades fisiológicas e aqui vamos agora entrando em Arzúa. Esta é a "terra do queixo" mas sobretudo o "Pórtico de Compostela" e se disso tivéssemos dúvidas um enorme mural publicitário com um peregrino de bastão e mochila com elas acabaria. Aqui se junta mais um dos Camiños de Santiago: a variante do "Camino del Norte" desde Boimorto.
Na subida da Avenida de Lugo passamos por imensas indicações de albergues, pensões e hosteis que nos dão a dimensão da importância do "Camino" nesta vila. Os cafés com esplanada na rua estão cheios de peregrinos. Aqui, no passeio, uma escultura em granito em forma prismática encimada pela cabeça enchapelada de Santiago, que diz "Camiño do Peregrino - Arzúa". É obra de Antonio Gago. Que dúvidas poderão restar ainda sobre a vocação Jacobea desta vila?..
Chegamos a um pequeno mas bem cuidado jardim com muita gente sentada desfrutando da sombra das árvores. Uma escultura em mármore exibe quatro vieiras sob o nome da vila. Em cima duas mãos sustentam um "queixo"... o quê?... não é "queixo"?... ah é queijo? tá bem, mas eu gosto do "queixo de Arzúa-Ulloa".
Olho para o GPS para ver a direção a tomar e... bolas!... devíamos ter cortado à esquerda um bom bocado abaixo. Distraídos que vínhamos não demos pela sinalização. Traço mentalmente um percurso que nos leve de novo ao "camino" sem ter que voltar para trás e... toca a andar. Este desvio tirou do nosso caminho a Capela da Madalena, templo gótico do séc XIV, atualmente centro de exposições e museu. Foi mais uma que passou. Paciência. No entanto, se houvéramos seguido o caminho sinalizado não teríamos visto este belo jardim onde se exibe a obra "Os Gandeiros" de Fernando García Blanco representando a força do potencial ganadeiro da região. Tão pouco teriamos passado à frente da Casa do Concello. Pronto, nem tudo foram perdas.
Saímos de Arzúa reencontrando-nos com o "camiño" junto de um cruzeiro num lajeado que parece atravessar um jardim de que aquela casa de xisto é um planta outonal de muitos outonos passados.
Descemos, por largo caminho de terra, para o vale. Passámos pela Fonte dos Franceses e agora a água límpida no Rego Vello corre a nosso lado refletindo celestes coloridos e cantando baixinho melodias de embalar.
Mil vezes descemos outras tantas subimos e As Barrosas levam-nos ladeira acima. Aqui paramos porque neste caminho alguém para sempre parou também. A placa recorda o padre "Moncho" que tão jovem no "Camino" se finou. «Las huellas del Señor no son invisibles» se lê no epitáfio, diria eu que tão pouco o são aquelas deixadas por quem faz a vida dos outros mais feliz.
Os desígnios insondáveis de Deus ocuparam o meu íntimo por largos momentos. Interrompe o meu pensar os passos corridos de uma jovem atleta que em dois dias correu o que nós andámos em onze. Sorrimos mutuamente e não são precisas palavras mas "ultreya" saiu-me da alma e verbalizou-se num desejo sincero. Porque será que a vida implica competição?... padre "Moncho" com quem competes agora?...
Aplanou-se o caminho entre o robledo. Alcança-nos uma itálica peregrina que sempre víramos no grupo dos catalães. Conversamos. O grupo decidiu para hoje um dia de meditação e encontro pessoal. Nunca se conheceram senão no Camino mas tomam decisões de grupo. Não se trata de decisões individuais mas de um grupo espontâneo e heterogéneo. Admirável. Sem por isso ter dado, distanciamo-nos dos meus companheiros. Num desabafo de alma humedecem-se os enormes olhos desta jovem a quem nada parece faltar. Nos recantos do ser, no fundo da alma, armazenam-se recordações que, por muito que recalquemos, acabam por assomar à superfície da nossa sensibilidade. Em perfeito castelhano, como sempre a ouvi falar, mas com voz embargada pela tristeza, me diz «voy a llorar». «Si, te hara bien lhorar» foi o que me saiu. Porque raio tenho tanta dificuldade em lidar com a tristeza dos outros?... Silenciámo-nos. Eu retardei o passo com a desculpa de me estar a afastar dos meus companheiros. A jovem peregrina continuou tão depressa quanto o fluir dos seus sentimentos em campo de intimidade que não quis eu que me fosse revelado. Momentos do caminho que me tocam o coração, me toldam o discernimento e me deixam calado.
A sombra dos carvalhos neste belo caminho apaziguam o meu espírito. Não sei porquê mas dei por nós quatro uns dos outros distanciados. Pouco a pouco aproximamo-nos e juntos seguíamos quando nos alcança Juan M. e, sorrindo, nos diz — Hola pareja de cuatro.
Sigo na conversa com Juan M. em passo normal. Falamos das experiências deste e de outros caminhos, falamos da terra onde vivemos e da família que amamos e, falando, melhor nos conhecemos. Num quarto de hora caminhando juntos tanto dissemos e nos afastámos que tendo ficado mais perto um do outro pela conversa mais longe ficámos dos meus companheiros pela distância. Agora estou a aguardar que cheguem enquanto Juan se afasta.
Por bosques de carvalhos chegámos a Pregontoño. Diz-se que por tanto aqui perguntarem, peregrinos e romeiros, que caminho seguir a terra adquiriu o nome.
Entre Pergontoño e Peroxa continuamos a subir mas agora entre grandes prados. De Peroxa nada a dizer senão que é mais outra aldeia ganadeira com vacas e mais vacas nos prados pastando. Começamos a descer. O caminho entra de novo num belo carvalhal. O caminho é agora de terra serpenteando dentro de um frondoso carvalhal. Passamos o Rego do Ladrón com um fiozinho de água que mansamente corre para sul. Aqui, num espaço mais aberto, o caminho contorna por um e outro lado uma sumptuosa árvore. Ao lado dois bancos para quem queira descansar.
Eis-no agora a passar Taberna Velha. Da dita não vi vestígios. De velhice ter-se-á finado. Mas tem uma coisa admirável: "El Muro de la Sabiduria". «La sabiduría requiere humildad y una mente inquisitiva: la humildad nos hace reconocer nuestra ignorancia con respecto a ciertos asuntos; una mente inquisitiva nos ayuda a comprenderlos mejor » lê-se no primeiro quadro e eu mastigo estas frases para digerir mais tarde. Continuemos.
Atravessamos um viaduto sobre a A-54 que tem duas faixas: uma é pedonal. Normal é encontrar passeios de ambos os lados, mas aqui não. Aqui previu-se a grande afluência de peregrinos e destinou-se-lhes uma faixa inteirinha separada e protegida por guarda forte em ferro da que é destinada às viaturas. Curioso é ainda que alguém decidiu "enfeitar" esse separador com uma coleção variada de autocolantes.
Passamos em A Calzada. Se o topónimo é ou foi apropriado, não será à estrada de macadame por onde vamos que se deverá. Uma casa rural reconstruída tem um hórreo de um tipo diverso dos que vimos até aqui. Há dias fiz uma pesquisa sobre hórreos quando constatei que os galegos eram muito diferentes dos asturianos. Em horreosdegalicia.com encontrei muita informação por isso posso dizer que este é do tipo "O Piso".
Para trás ficou A (des)Calzada e passámos o Rego Lengüello e agora seguimos num bosque de encantos. Encantam-nos os velhos musgados carvalhos que nos abraçam, encanta-nos o pendulado das heras nos troncos velhos, encanta-nos o restolhar das folhas secas que vamos pisando, encanta-nos o silêncio, encanta-nos o chilreio de um ou outro pássaro, encanta-nos a sensação de paz no nosso íntimo e... encanta-nos saber que a cada passo nos aproximamos do nosso destino.
Um caminho lageado aperta-nos entre velhos muros de velhas casas. Um hórreo estrangeiro lá em cima na Casa do Hórreo. Numa curva do caminho aparece um achado: a Casa da Tia Dolores com todas as garrafas que ali se esvaziaram penduradas por tudo o que é sítio. São milhares! que grandes bêbados.
Andamos mais um pouco e eis que chegamos ao Albergue. Haja Deus!
Waypoints
Photo
1,124 ft
Em a Calzada passamos junto a uma casa rural bem recuperada que tem um hórreo do tipo 'O Pino'
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Information
Easy to follow
Scenery
Moderate
Etapa interessante.
Percurso com paisagens bonitas.
Apesar do cansaço, pelos quilómetros acumulados, o entusiasmo continua igual ou maior ao da primeira etapa.
Cada pedaço percorrido continua a "encantar - nos".