Caminho Primitivo - 2ª Etapa (Grado - Porciles)
near Grado, Asturias (España)
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Itinerary description
A satisfação ilumina-nos o rosto. As luzes do Parque Manuel Pedregal, por entre árvores de folhas pingando as últimas gotas da chuva da noite, geram miríades de pequenas estrelas luzentes. Os comentários entre nós dão conta do que nos vai na alma. Durante a noite o voluntariado do Albergue providenciou para que as botas ensopadas na véspera se apresentem agora sequinhas por fora e por dentro; o pequeno almoço, sem custo acrescido, foi de excelência; as instalações são de boa qualidade e asseadas; e... hoje não chove (pelo menos por enquanto).
De cabeça fresca é meu hábito rever a cidade que vamos deixando para trás. A fundação da Villa de Grado/Grau situa-se algures na baixa idade média, existindo referência documental em 1256. Nas sendas do tempo e da memória se perdeu a origem do gentílico "moscones" que designa aqueles que ali são natos. O vale do Nalón e Cubia, a grande Veiga Grau, centro agrícola e ganadeiro, é considerado desde tempos imemoriais uma das despensas das Astúrias. O grande "mercáu de Grau", que se realiza ao domingo na "Plaza del General Ponte", dizem que é mostra disso pela variedade e rusticidade dos produtos vendidos e animação de que se reveste. Infelizmente não passámos em dia de mercado. E saímos da Villa "moscona" sem que dela tenhamos registo de imagens. Os pontos de interesse em Grado são muitos e variados. Porquê então este vazio?... ontem a chuva e o cansaço tiraram-nos a vontade de visitar a urbe; hoje o breu da noite, que ainda era quando saímos, escondeu de nós o que gostaríamos de ter visto.
A manhã ainda tardaria a despontar quando saímos do albergue, descendo a Calle Moralina. Ao longo da rua há uma quinta que faz canto com a Calle Eulogio Diaz Miranda. Para lá da vegetação e das sebes do jardim não deu senão para imaginar o estilo eclético de Juan Miguel de La Guardia no edifício do Palacete Velásquez ou "El Capitólio", como também é conhecido. É "Casa de Indianos". Lemos e estranhámos a designação. Soubemos depois que "indiano" é, para o povo asturiano, sinónimo de "emigrante das Américas bem sucedido". Alejandro Braña, no artigo "Tierra de indianos", publicado no site "Asturias por Descubrir", diz que se deve a Pancho García a construção do palacete. Pancho García foi um "Indiano" que singrou na indústria tabaqueira de Cuba. Os "habanos" que Churchill fumava eram marca "Romeo y Julieta" das fábricas de Pancho. Braña diz que o Palacete foi construído na década de 80 do séc. XIX e anos depois destruído por um incêndio. A reconstrução é obra de La Guardia. Mais tarde terá sido comprado por Manuel Velásquez. Outros autores dizem que a construção do palacete e o nome "El Capitólio" se devem tão só a Manuel Velásquez. Vai-se lá saber...
Subimos a "Calle Eulogio Diaz Miranda" ainda demasiado escura se apresentava a madrugada para não termos visto a "Villa Granda", outro palacete de indianos. Juan Granda foi outro emigrante em Cuba onde geriu uma plantação de tabaco. Este palacete tem uma particularidade: as pedras foram numeradas para que, em caso de necessidade de transladar o edifício, fosse possível reconstruí-lo tal qual é.
E sem que tenhamos registo disso, na mesma rua, passámos mais quatro "casas de indianos": o "Palacete de la Família Martinez", o "Palacete del Portal 26", "La Quintana", que foi recuperada e convertida em albergue para peregrinos, e "El Calabión", também da autoria de Juan Miguel de La Guardia.
Pela arquitetura e monumentos, Grado merecia algumas horas de visita, mas as botas estavam ontem tão molhadas que não dava para as ter mais nos pés, e hoje, pelo caminho que temos para andar, não nos podemos demorar. Paciência...
Neste pensar tão distraídos íamos que o grito, - hei! hei! - nos assustou.
- Não é por aí. Olhem ali a Vieira.
Carlos, um peregrino português que não encontráramos ainda, tomava o "disayuno" no "El Pistolo" diz que não vamos na direção certa. Estranhei porque o GPS ainda não dera sinal de direção errada. Confirmei: tinha razão o Carlos. Agradecemos, seguimos e cá vamos pela íngreme "calle La Podada de Arriba" acima. Termina o asfalto e entramos num caminho rural ainda mais inclinado.
Começa a clarear. O caminho aplanou entre prados orvalhados. Ao longe, a Serra Miranda liberta os vapores da manhã pelas encostas. Passamos entre muros sob castanheiros e entramos no asfalto.
De novo a subir por caminho rural asfaltado, duro e monótono. De um e outro lado repetem-se os prados. Onde esperávamos encontrar bovinos e/ou equinos, encontramos um jumento em estática posição que parece gelado.
O odor das "trombetas" no jardim junto ao caminho envolve-nos e leva-nos a sentir a beleza do local. Viramo-nos para dentro. A espiritualidade no Caminho acontece, não sabemos quando nem porquê. Eleva-nos a estados de alma que dificilmente se entendem se não vividos. Abstraímo-nos do que e quem nos rodeia; o automatismo toma conta de nossos passos; a mochila deixa de se diferenciar do corpo e não pesa; o pensamento voa pelo passado mal arrumado nos recônditos da memória... sinto que a subida acabou e que vamos a descer... a descer?!... há quanto tempo?... olho para o traçado a laranja no GPS e o meu receio confirma-se, o alto, ou passo, "del Freisnu" ficou para trás. Fico zangado!... Este era um ponto de interesse que não queria perder. Às vezes, quando nos procuramos, esquecemos de nos encontrar com os nossos planos.
O Santuário da Nuestra Señora de El Freisnu ficou por visitar. Algumas coisas recordo do que li sobre este santuário quando preparei o caminho. Ponto de devoção de romeiros e peregrinos, o aspeto atual do santuário é fruto de reconstruções dos séculos XVII e XVIII sobre um outro mais antigo. E também terá sido intervencionado posteriormente já que ficou muito danificado com as invasões francesas. Situado entre as antigamente designadas "Astúrias de Oviedo" e as "Astúrias de Tineo", passagem natural entre os vales do Nalón e do Narcea, sempre foi um lugar de devoção. Diz-se que tanto aqui oram os peregrinos que vão para Santiago como os que vão para Oviedo peregrinando a San Salvador. Apesar das fotos que vi, não me recordo de como é o templo. Ficou por ver. Não me conformo!...
Moendo o meu inconformismo tento concentrar-me no caminho. Envolve-nos uma névoa persistente. Uma placa indica a existência de uma ponte do séc. XVII ou XVIII. Se não existisse a placa não a teríamos visto de tanto mato que tem à volta. É uma ponte de pedra sobre "El Regueiru La Meredal" que nasce junto de "El Freisnu". Ponto assinalado de interesse mas não cuidado.
No final da grande descida, por estrada de cimento ladeada de belas flores, entramos em San Marcelo (Samarciellu em asturiano). Um jovem chama-nos. «Do you wanna a coffee?). Subimos. São um casal moderno. Vidas alternativas. Um sumo e um café. Pequenos bolos em pote de vidro. Deixa-se donativo. Um serviço dependente da menor ou maior generosidade de quem passa. Vive-se o hoje, amanhã Deus proverá.
Caminhamos na estrada que jardim mais parece pela quantidade, variedade e exuberância das flores. Empatizamos com as gentes daqui sem que necessário seja cruzarmo-nos com alguém. O colorido das flores entra na alma e alivia o humor. Soa um "Buen Camino" a confirmar a simpatia das gentes. As "paneras" várias e os campos cultivados atestam o labor agrícola do povo. Em baixo passa o Arroyo del Fresno ou Regueiru Del Freisnu. Saímos de Samarciellu e entramos na SL-9. Já pertinho da rotunda de acesso à A-63 um "mojón" aponta um carreirinho que atravessa o prado à esquerda. Ali pertinho atravessamos o "regueiru" sobre ponte de madeira. Informa o painel chamar-se La Meredal e recuperada em 2007. Seguimos em lindo carreiro na margem do ribeirinho entre grandes amieiros, freixos, avelaneiras, castanheiros e muitos arbustos e fetos que transmitem uma melancólica paz interior. A melancolia aumenta à vista da ruína de um moinho de água à beira da ribeira. É "El Molín de La Reaz" que agoniza ao abandono. Entramos com cuidado, não só por nós mas para não estragar mais aquele testemunho do passado que não é ainda há muito tempo. O conjunto moageiro e a turbina ainda não estão muito deteriorados. Era recuperável. Saímos e reparamos que o telhado partido se deve à queda de uma árvore que repousa sobre ele. Pena é que vá jazendo neste abandono.
Chegamos a Reaz. Uma "panera", duas casas, um "hórreo" e um palheiro em recuperação para provável diferente fim. De quem seria o moinho que jaz na ribeira aqui tão perto?... apetece-me gritar "preservem a memória de quem foram se quereis saber quem sois!".
Uma fonte à saída mata a sede mas não a revolta.
Passamos num túnel debaixo da via de acesso à A-63. A ribeira continua ao lado mas encoberta aos olhos por cerrado arvoredo. Entramos em La Doriga. Seguem as setas os meus companheiros, eu dou a volta à igreja de Santa Eulália pelo lado contrário. Passo por detrás da sacristia e logo chego à conclusão que o não devia ter feito. O templo nasceu românico mas pouco resta desse tempo. O arco do portal sul e a estela que data a consagração do templo, pelo bispo D. Pelayo em 1121 e lista as relíquias nele conservadas, são os únicos testemunhos de antanho. Sofreu danos profundos com o tempo e as guerras. Encontra-se de porta fechada e como muito é o caminho para andar, não demoramos.
Passamos por Cá Pacita, "El Chigre", emblemático para peregrinos não o foi para nós porque encerrado. Li a história de Sandalio Garcia, fusilado na Guerra Civil, e da viúva Maria da Paz, Pacita. História de emigração, amor, dança e resiliência. Hoje os netos gerem o negócio a que acrescentaram um albergue.
Seguimos entre pastos onde o gado, alheio a quem passa, pasta mansamente. Talvez porque paisagens a que nossos olhos se habituaram já, volta atrás o pensamento. Recordo apontamentos: Doriga tem marcas na história que o tempo não apaga: o palácio dos Doriga foi residência e quartel general do marechal Ney na passagem para Grado; os filhos foram sacrificados na Guerra Civil; o contrabando por caminhos que fugiam ao controlo de La Cabruñana...
Desperta-nos o ruído da A-63. Passamos o túnel e entramos num bosque denso e muito húmido. Todas as espécies de árvores que encontrámos nos caminhos das Astúrias, juntam-se aqui para orlar este delicioso carreiro que vamos descendo. Os fetos reais e o musgo que cobre pedras e velhos troncos transmitem uma sensação de mistério onde só faltam anões e gnomos. Agora o carreiro tansforma-se numa calçada em que o calceteiro, não tendo pedras que chegassem, distribuiu as que tinha. Cuidado, vê onde pões os pés, não escorregues.
Findo o carreiro caminhamos em asfalto junto a cortes de animais que exalam um desagradável odor.
Saímos para a AS-15 em "La Ponte - Casas del Puente". Ali, encostado à parede por baixo de uma panera, um banco que alguém destinou a peregrinos que queiram fazer uma pausa. À tipicidade do local acrescente-se uma fonte artística, um relógio e vários símbolos jacobeus.
Atravessámos a AS-15 e caminhamos num carreiro entre a estrada e uma plantação de kiwis. Passamos La Rodriga e lembro a lenda que li das três Xanas e me despertou curiosidade porque as Xanas asturianas são aparentadas com as Jans alentejanas. Será a lenda mais ou menos assim: Viviam três Xanas presas de encantamento num "arroyo" junto ao moinho de Paxina. Um pobre pescador que ali tentava pescar o peixe que a fome matasse a seus filhos, foi surpreendido pela imagem das ninfas no espelho de água do ribeiro. Dizem-lhe que traga três "bollos de cuernos" e os lance ali à água que elas o tornarão rico. Vai o homem à boleira, compra os bolos, passa por casa, deixa os bolos em cima da mesa enquanto arruma a cana de pesca, a mulher vê os bolos, parte um bocado de um para o comer, sai sangue do bolo, assusta-se a mulher, põe o bocado onde o tirou, o sangue pára, o pescador regressa, pega nos bolos, dirige-se à ribeira, lança os bolos à água, saiem as três belas Xanas da ribeira montadas em cavalos brancos mas..., há sempre um "mas" a tramar a história, ...um dos cavalos sai coxo, a respetiva Xana cai à água e de lá não mais saiu. Dizem que haverá uma manhã de São João em que se torne visível e então poder-se-à quebrar o feitiço. Quanto ao pobre homem mais rico não terá ficado por não ter quebrado o encantamento de todas as Xanas, concluo eu.
Entramos na N-634 e atravessamos a ponte do rio Narcea entre proteções de ferro pintadas de azul. Lá em baixo, nas águas frescas vive o salmão, o rei do rio. Chama-se "El Campanu" ao primeiro que é pescado em cada temporada e há festa quando acontece. Passamos fora de época. Hoje não há pescadores.
Cornellana é já ali. Já vejo uma "canha" à minha espera. Abancamos no "Meson Dany".
Enquanto espero vou desfilando memórias de leituras feitas:
Cornellana, ou Curniana, diz-se ter origem numa Villa agrícola Romana, a Villa de Cornelius. A "villa" encontra-se documentada desde o séc. X;
No início do ano 1000 era pertença de Ordoño filho de Ramiro III de Leão. Quando Ordoño morreu, em 1012, a viúva Cristina Bermúdez fez voto de consagração e fundou uma igreja na povoação. A igreja torna-se mosteiro por documento de 1024;
A fundação do mosteiro de San Salvador pouco estimula o crescimento da localidade, mas quando, quase cem anos depois, um neto de Cristina o doa aos monges da Ordem de Cluny, grandes impulsionadores das peregrinações a Santiago, aumentam significativamente as instalações, desenvolvem a agricultura e a agropecuária nos territórios concedidos por Alfonso VII, que se estendiam por muitos quilómetros ao redor;
Quando, no séc. XIV, o poder da ordem clunicense caiu, a posse do seu património foi muito disputada e só no reinado dos Reis Católicos se acabaria a disputa com a entrega do mosteiro à congregação de S. Bento de Valladolid.
Mas talvez tenha sido a localização estratégica num centro de passagem e paragem de peregrinos, romeiros, arrieiros, carroceiros, agricultores, ganadeiros, etc... etc... que faz com que se desenvolvam tabernas, casas de pasto, lojas de comércio de bens e serviços. Hoje, o movimento diz o que esta urbe é.
Meia hora, ou mais, terá passado e a(s) "caña(s) já era(m), pelo que retomamos El Camino.
Atravessamos a N-634 e seguimos na rua em frente.
As laranjeiras bravas, no passeio, apresentam frutos que ninguém colhe porque a amargura já se apresenta em dose suficiente no dia a dia. Atravessamos o Nonaya e a sombra "del Carbayón de Cornellana", uma árvore com quase 500 anos e 7m de perímetro. Chegamos à "Plazza del Campillo". À nossa frente, virada para onde o sol se põe, a fachada barroca do mosteiro de San Salvador da segunda metade do século XVII. Nas invasões francesas as tropas napoleónicas fizeram do mosteiro cavalariças e queimaram-no quando saíram. E... mais me não recordo.
Sigamos que se faz tarde e o caminho é longo.
Passamos por detrás da abside tríplice, contornamos o muro do mosteiro e seguimos pelo vale do Narcea.
Por asfalto subimos para Sobrerriba ou Suburriba. Na encosta olhamos o mosteiro lá em baixo e reparamos na torre românica na parte de trás da igreja, restos de outros tempos que o tempo deixa como testemunho.
Outra vez por baixo da A-63. Um pouco acima, agoniza uma velha "panera" mas outras se seguem em melhor estado. Aponto a câmara do telemóvel à mais bonita, uma senhora, da janela da casa ao lado esclarece «Panera... es una panera... no hórreo... hórreo no!». Sorrio, agradeço e corro atrás dos companheiros pouco interessados em hórreos e paneras. Mas vou a pensar naquilo que distingue as duas estruturas, porque pensei que todas eram "paneras" e seriam hórreos apenas as pequenas estruturas galegas idênticas aos espigueiros minhotos. Mas não. Aqui, nestes grandes espigueiros há "paneras" e "hórreos". Xurde Morán explica: «En contra de lo que suele pensarse la diferencia entre hórreo y panera no es el número de pegollos sino la estructura, cuadrada y con techo piramidal (hórreo) o rectangular y con techo de dos moños o picos (panera).». Gracias Xurde.
Saímos da SL-7 junto a um "mojón" com vieira invadida por caracóis. Deixamos Sobrerriba passando por rua onde hórreos e paneras coexistem com casas. Estas em número menor.
Por caminho rural, onde imagino ouvir o chiar das rodas dos carros de bois carregando milho, vamos subindo pisando folhas e ouriços do outono dos castanheiros que sombreiam o nosso caminho, refrescam a alma e poupam os pés. Suavemente vamos descendo entre as árvores deste frondoso caminho e depois carreiro estreito e maravilhoso. Uma ou outra aberta à direita permite ver o lindo vale do Nonaya e a "Sierra de Faxas". Entramos em Llamas e o pombal à beirinha da estrada captura a câmara do telemóvel. À frente um novo e imaginativo "negócio" convida a escrever, desenhar ou pintar uma telha. Muitos o fazem e deixam donativo para lá das frases bonitas ou originais desenhos. Um de nós pára e escreve e mais não fez que deixar a originalidade de um pensamento numa telha. Outros virão, outros lerão, outros meditarão e, depressa hão de esquecer. O caminho faz-se de passos e momentos que se sucedem, uns e outros, mas nenhum se repete.
Um plaino no vale do Nonaya é agora o nosso caminho. Caminho rural largo, plano e reto, tão reto que parece que não acaba. Lá à frente, na encosta, La Quintana com a igreja no centro da nossa atenção e devoção dos seus habitantes. Dizem que aqui terá existido um mosteiro que uma tal Sancha Rodríguez terá doado aos monges de Belmonte.
Acabou a reta no cruzamento para "la Quintana". Logo ali, à esquerda uma merendeira zona à beira da "Fuente de Santiago". Um italiano peregrino refresca os pés no "lavadero" onde a água fresca da fonte cai e descansa antes de seguir caminho. Como é bom seguir o exemplo da sabedoria. Descansam as mochilas ali ao pé, descansam as cansadas botas ali ao pé, descansam na fresca água aqui nossos pés.
Vinte e tal minutos passaram e passaram também os sorrisos de outros peregrinos, também eles passantes. Ficou a memória e o sorriso de dois atléticos casais russos, um residente em Alicante outro na holanda, que ali refrescaram mãos e cara e seguiram apressados.
Para trás ficou a frescura da fonte. Acompanha-nos o desejo de mais frescas temperaturas e Alguém escuta nosso desejo, o sol enevoa-se e o caminho torna-se mais ameno.
Outra velha panera cruza-se conosco neste caminhar que a vida é. Ela imóvel, mais velha e caindo aos bocados agonizante, nós caminhantes de vida diferente ainda com força para sonhar outras vidas.
Ameniza-se o caminhar e humor atravessando este fresco e lindo bosque, pleno de verdura e encanto, onde até o natalício azevinho cresce. Musgo e fetos enfeitam muros e pedras, as heras trepam pelos troncos húmidos, saltamos pequenos "arroyos" e, ouvindo o cantar da água do Nonaya, que só de quando em vez vemos, seguimos embalados em sensações de beleza e espiritualidade. Atravessamos o rio na velha Ponte de Casazorrina que, com três séculos de existência, muitas gerações já suportou e muito teria para contar se a entendêssemos.
Entramos em Casazorrina. A primeira casa é de pedra, ferrosa na cor, o piso cimeiro ripado em madeira, com todas as portas protegidas por grades e por baixo da lateral aparece uma levada de água. Será moinho?... ninguém por aqui está que nos informe.
Entre casas ou velhos muros vamos passando pelo povoado onde a abundância de água permite florir jardins à beira da rua. Uma peregrina fotografa "brincos de princesa" que não conhecia. Dizemos que existem muitas variedades e todas incrivelmente belas. À frente, no nó de uma figueira, um Santiago romeiro encontrou o seu nicho de onde, decerto, abençoa quem passa.
Entre prados deixamos para trás Casazorrina e termina o asfalto perto do rio. Atravessamos de novo o Nonaya, agora na "Pasarela de la Debesa" (ou será "de La Devesa"?... o que significa "terreno dedicado a pasto de gado bovino").
Pouco andámos e, junto a um hórreo, temos "La Torre de la Devesa". Acreditando em quem sabe e, daquilo que nestes caminhos existe, Xurde Morán é mestre, então esta torre data do séc. XVI. Entre ter sido uma venda ou uma casa fidalga aí divergem as opiniões.
Porquê não sei, mas entrei em modo meditação ou "maria vai com as outras" e "acordei" aqui já à entrada de Salas. Se existe algum motivo de interesse depois da Torre de la Devesa não sei, não vi, não registei, pronto.
Estamos na "Plaza de San Roque". À nossa frente a capela do séc. XVII, foi capela do Hospital de Peregrinos de San Roque de Salas que nesta praça existiu e, documentalmente, já em 1405 exercia atividade.
No seguimento da capela um conjunto de casas de arquitetura tradicional com "balcones, corredores y galerías" que foram construídas onde se localizava o hospital.
Estamos na Avenida Galicia. À esquerda o portal da Colegiata de Santa Maria la Mayor. Acabada no ano de 1549, é um monumento gótico, com elementos renascentistas, a que foi adicionada a torre e as capelas no séc.XVII. Foi fundada por Fernando Valdés y Salas, político e eclesiástico muito poderoso e influente na Castela do séc. XVI. Já o havíamos encontrado na estátua do claustro da Universidade em Oviedo a cuja fundação está ligado. Desde arcebispo de Sevilha, inquisidor geral de Espanha, presidente do conselho de Castela, a bispo de Sigüenza, de León, de Oviedo, de Orense e de Elna... tudo este homem fez sobrando-lhe ainda tempo para o mecenato que promoveu com a sua imensa fortuna.
Quando nos preparamos para visitar a igreja gótica dou conta que são quase três da tarde e ainda não almoçámos. Com cerca de 6 quilómetros para andar a subir até Porciles necessário se torna procurar confortar o estômago.
À pergunta que fazemos a quem passava no momento, onde poderíamos comer, a resposta foi perentória «Comer? lo mejor es en la Casa Pachón».
Cá estamos. Com a lotação esgotada arranja-se mais uma mesa e 4 cadeiras que vêm do outro lado da praça. O menu peregrino tem duas opções para cada prato. Peço sopa de lentilhas e carapaus fritos. Comi a sopa. Os carapaus vêm acompanhados de batatas fritas (há sempre uma primeira vez para tudo).
Retomamos o caminho. Ponho-me a recordar, com alguma sensação de pena e culpa, o que ficou por ver em Salas. Quando programei o caminho quiz alongar esta etapa para distribuir de forma mais equitativa a distância a percorrer diariamente. Fiz mal. Salas merecia tempo. Agora nada a fazer. Tanto que gostava de ter visitado a Igreja da Colegiata... e o Museu Pré-românico San Martin, instalado na torre do Palácio dos Valdés Salas e que guarda um conjunto valiosíssimo de peças e lápides epigráficas da igreja de San Martin... e a própria igreja de San Martin que fica apenas a 1km do centro da vila...
Pronto não me martirizo mais. Vamos em frente.
Fica Salas para trás. Vamos leves. As mochilas foram à boleia. Há quem pergunte: Então o irredutível peregrino que critica quem usa o táxi-mochila fez o mesmo?!... posso explicar?... os nossos companheiros chegaram a Salas com dificuldades e mazelas várias. Decidiram ir de táxi até Porciles e tanto insistiram que me convenceram. «É demasiado tarde, o que falta é muito a subir, e mais isto, e mais aquilo...etc...etc...» pronto, cedi. Agora vamos aqui, eu e a minha companheira de vida, acelerados atrás de um senhor, sem mochila mas com bastão de pau, que sobe em passo acelerado. Saudamos e metemos conversa. José caminha de volta a casa em "La Espina". Faz com regularidade este caminho, conhece-o ao pormenor. Seguimos com ele a uma velocidade que, para os seus 63 anos, é excecional. Passamos fontes e pontes antigas, passamos sob os viadutos da inacabada autoestrada da Espina, passamos ao lado de Porciles e a 150 m chegamos ao Albergue, onde os nossos companheiros nos esperavam. Demorámos 1h05m desde Salas. Obrigado José pela companhia, o estímulo e a simpatia generosa. Até sempre José.
De cabeça fresca é meu hábito rever a cidade que vamos deixando para trás. A fundação da Villa de Grado/Grau situa-se algures na baixa idade média, existindo referência documental em 1256. Nas sendas do tempo e da memória se perdeu a origem do gentílico "moscones" que designa aqueles que ali são natos. O vale do Nalón e Cubia, a grande Veiga Grau, centro agrícola e ganadeiro, é considerado desde tempos imemoriais uma das despensas das Astúrias. O grande "mercáu de Grau", que se realiza ao domingo na "Plaza del General Ponte", dizem que é mostra disso pela variedade e rusticidade dos produtos vendidos e animação de que se reveste. Infelizmente não passámos em dia de mercado. E saímos da Villa "moscona" sem que dela tenhamos registo de imagens. Os pontos de interesse em Grado são muitos e variados. Porquê então este vazio?... ontem a chuva e o cansaço tiraram-nos a vontade de visitar a urbe; hoje o breu da noite, que ainda era quando saímos, escondeu de nós o que gostaríamos de ter visto.
A manhã ainda tardaria a despontar quando saímos do albergue, descendo a Calle Moralina. Ao longo da rua há uma quinta que faz canto com a Calle Eulogio Diaz Miranda. Para lá da vegetação e das sebes do jardim não deu senão para imaginar o estilo eclético de Juan Miguel de La Guardia no edifício do Palacete Velásquez ou "El Capitólio", como também é conhecido. É "Casa de Indianos". Lemos e estranhámos a designação. Soubemos depois que "indiano" é, para o povo asturiano, sinónimo de "emigrante das Américas bem sucedido". Alejandro Braña, no artigo "Tierra de indianos", publicado no site "Asturias por Descubrir", diz que se deve a Pancho García a construção do palacete. Pancho García foi um "Indiano" que singrou na indústria tabaqueira de Cuba. Os "habanos" que Churchill fumava eram marca "Romeo y Julieta" das fábricas de Pancho. Braña diz que o Palacete foi construído na década de 80 do séc. XIX e anos depois destruído por um incêndio. A reconstrução é obra de La Guardia. Mais tarde terá sido comprado por Manuel Velásquez. Outros autores dizem que a construção do palacete e o nome "El Capitólio" se devem tão só a Manuel Velásquez. Vai-se lá saber...
Subimos a "Calle Eulogio Diaz Miranda" ainda demasiado escura se apresentava a madrugada para não termos visto a "Villa Granda", outro palacete de indianos. Juan Granda foi outro emigrante em Cuba onde geriu uma plantação de tabaco. Este palacete tem uma particularidade: as pedras foram numeradas para que, em caso de necessidade de transladar o edifício, fosse possível reconstruí-lo tal qual é.
E sem que tenhamos registo disso, na mesma rua, passámos mais quatro "casas de indianos": o "Palacete de la Família Martinez", o "Palacete del Portal 26", "La Quintana", que foi recuperada e convertida em albergue para peregrinos, e "El Calabión", também da autoria de Juan Miguel de La Guardia.
Pela arquitetura e monumentos, Grado merecia algumas horas de visita, mas as botas estavam ontem tão molhadas que não dava para as ter mais nos pés, e hoje, pelo caminho que temos para andar, não nos podemos demorar. Paciência...
Neste pensar tão distraídos íamos que o grito, - hei! hei! - nos assustou.
- Não é por aí. Olhem ali a Vieira.
Carlos, um peregrino português que não encontráramos ainda, tomava o "disayuno" no "El Pistolo" diz que não vamos na direção certa. Estranhei porque o GPS ainda não dera sinal de direção errada. Confirmei: tinha razão o Carlos. Agradecemos, seguimos e cá vamos pela íngreme "calle La Podada de Arriba" acima. Termina o asfalto e entramos num caminho rural ainda mais inclinado.
Começa a clarear. O caminho aplanou entre prados orvalhados. Ao longe, a Serra Miranda liberta os vapores da manhã pelas encostas. Passamos entre muros sob castanheiros e entramos no asfalto.
De novo a subir por caminho rural asfaltado, duro e monótono. De um e outro lado repetem-se os prados. Onde esperávamos encontrar bovinos e/ou equinos, encontramos um jumento em estática posição que parece gelado.
O odor das "trombetas" no jardim junto ao caminho envolve-nos e leva-nos a sentir a beleza do local. Viramo-nos para dentro. A espiritualidade no Caminho acontece, não sabemos quando nem porquê. Eleva-nos a estados de alma que dificilmente se entendem se não vividos. Abstraímo-nos do que e quem nos rodeia; o automatismo toma conta de nossos passos; a mochila deixa de se diferenciar do corpo e não pesa; o pensamento voa pelo passado mal arrumado nos recônditos da memória... sinto que a subida acabou e que vamos a descer... a descer?!... há quanto tempo?... olho para o traçado a laranja no GPS e o meu receio confirma-se, o alto, ou passo, "del Freisnu" ficou para trás. Fico zangado!... Este era um ponto de interesse que não queria perder. Às vezes, quando nos procuramos, esquecemos de nos encontrar com os nossos planos.
O Santuário da Nuestra Señora de El Freisnu ficou por visitar. Algumas coisas recordo do que li sobre este santuário quando preparei o caminho. Ponto de devoção de romeiros e peregrinos, o aspeto atual do santuário é fruto de reconstruções dos séculos XVII e XVIII sobre um outro mais antigo. E também terá sido intervencionado posteriormente já que ficou muito danificado com as invasões francesas. Situado entre as antigamente designadas "Astúrias de Oviedo" e as "Astúrias de Tineo", passagem natural entre os vales do Nalón e do Narcea, sempre foi um lugar de devoção. Diz-se que tanto aqui oram os peregrinos que vão para Santiago como os que vão para Oviedo peregrinando a San Salvador. Apesar das fotos que vi, não me recordo de como é o templo. Ficou por ver. Não me conformo!...
Moendo o meu inconformismo tento concentrar-me no caminho. Envolve-nos uma névoa persistente. Uma placa indica a existência de uma ponte do séc. XVII ou XVIII. Se não existisse a placa não a teríamos visto de tanto mato que tem à volta. É uma ponte de pedra sobre "El Regueiru La Meredal" que nasce junto de "El Freisnu". Ponto assinalado de interesse mas não cuidado.
No final da grande descida, por estrada de cimento ladeada de belas flores, entramos em San Marcelo (Samarciellu em asturiano). Um jovem chama-nos. «Do you wanna a coffee?). Subimos. São um casal moderno. Vidas alternativas. Um sumo e um café. Pequenos bolos em pote de vidro. Deixa-se donativo. Um serviço dependente da menor ou maior generosidade de quem passa. Vive-se o hoje, amanhã Deus proverá.
Caminhamos na estrada que jardim mais parece pela quantidade, variedade e exuberância das flores. Empatizamos com as gentes daqui sem que necessário seja cruzarmo-nos com alguém. O colorido das flores entra na alma e alivia o humor. Soa um "Buen Camino" a confirmar a simpatia das gentes. As "paneras" várias e os campos cultivados atestam o labor agrícola do povo. Em baixo passa o Arroyo del Fresno ou Regueiru Del Freisnu. Saímos de Samarciellu e entramos na SL-9. Já pertinho da rotunda de acesso à A-63 um "mojón" aponta um carreirinho que atravessa o prado à esquerda. Ali pertinho atravessamos o "regueiru" sobre ponte de madeira. Informa o painel chamar-se La Meredal e recuperada em 2007. Seguimos em lindo carreiro na margem do ribeirinho entre grandes amieiros, freixos, avelaneiras, castanheiros e muitos arbustos e fetos que transmitem uma melancólica paz interior. A melancolia aumenta à vista da ruína de um moinho de água à beira da ribeira. É "El Molín de La Reaz" que agoniza ao abandono. Entramos com cuidado, não só por nós mas para não estragar mais aquele testemunho do passado que não é ainda há muito tempo. O conjunto moageiro e a turbina ainda não estão muito deteriorados. Era recuperável. Saímos e reparamos que o telhado partido se deve à queda de uma árvore que repousa sobre ele. Pena é que vá jazendo neste abandono.
Chegamos a Reaz. Uma "panera", duas casas, um "hórreo" e um palheiro em recuperação para provável diferente fim. De quem seria o moinho que jaz na ribeira aqui tão perto?... apetece-me gritar "preservem a memória de quem foram se quereis saber quem sois!".
Uma fonte à saída mata a sede mas não a revolta.
Passamos num túnel debaixo da via de acesso à A-63. A ribeira continua ao lado mas encoberta aos olhos por cerrado arvoredo. Entramos em La Doriga. Seguem as setas os meus companheiros, eu dou a volta à igreja de Santa Eulália pelo lado contrário. Passo por detrás da sacristia e logo chego à conclusão que o não devia ter feito. O templo nasceu românico mas pouco resta desse tempo. O arco do portal sul e a estela que data a consagração do templo, pelo bispo D. Pelayo em 1121 e lista as relíquias nele conservadas, são os únicos testemunhos de antanho. Sofreu danos profundos com o tempo e as guerras. Encontra-se de porta fechada e como muito é o caminho para andar, não demoramos.
Passamos por Cá Pacita, "El Chigre", emblemático para peregrinos não o foi para nós porque encerrado. Li a história de Sandalio Garcia, fusilado na Guerra Civil, e da viúva Maria da Paz, Pacita. História de emigração, amor, dança e resiliência. Hoje os netos gerem o negócio a que acrescentaram um albergue.
Seguimos entre pastos onde o gado, alheio a quem passa, pasta mansamente. Talvez porque paisagens a que nossos olhos se habituaram já, volta atrás o pensamento. Recordo apontamentos: Doriga tem marcas na história que o tempo não apaga: o palácio dos Doriga foi residência e quartel general do marechal Ney na passagem para Grado; os filhos foram sacrificados na Guerra Civil; o contrabando por caminhos que fugiam ao controlo de La Cabruñana...
Desperta-nos o ruído da A-63. Passamos o túnel e entramos num bosque denso e muito húmido. Todas as espécies de árvores que encontrámos nos caminhos das Astúrias, juntam-se aqui para orlar este delicioso carreiro que vamos descendo. Os fetos reais e o musgo que cobre pedras e velhos troncos transmitem uma sensação de mistério onde só faltam anões e gnomos. Agora o carreiro tansforma-se numa calçada em que o calceteiro, não tendo pedras que chegassem, distribuiu as que tinha. Cuidado, vê onde pões os pés, não escorregues.
Findo o carreiro caminhamos em asfalto junto a cortes de animais que exalam um desagradável odor.
Saímos para a AS-15 em "La Ponte - Casas del Puente". Ali, encostado à parede por baixo de uma panera, um banco que alguém destinou a peregrinos que queiram fazer uma pausa. À tipicidade do local acrescente-se uma fonte artística, um relógio e vários símbolos jacobeus.
Atravessámos a AS-15 e caminhamos num carreiro entre a estrada e uma plantação de kiwis. Passamos La Rodriga e lembro a lenda que li das três Xanas e me despertou curiosidade porque as Xanas asturianas são aparentadas com as Jans alentejanas. Será a lenda mais ou menos assim: Viviam três Xanas presas de encantamento num "arroyo" junto ao moinho de Paxina. Um pobre pescador que ali tentava pescar o peixe que a fome matasse a seus filhos, foi surpreendido pela imagem das ninfas no espelho de água do ribeiro. Dizem-lhe que traga três "bollos de cuernos" e os lance ali à água que elas o tornarão rico. Vai o homem à boleira, compra os bolos, passa por casa, deixa os bolos em cima da mesa enquanto arruma a cana de pesca, a mulher vê os bolos, parte um bocado de um para o comer, sai sangue do bolo, assusta-se a mulher, põe o bocado onde o tirou, o sangue pára, o pescador regressa, pega nos bolos, dirige-se à ribeira, lança os bolos à água, saiem as três belas Xanas da ribeira montadas em cavalos brancos mas..., há sempre um "mas" a tramar a história, ...um dos cavalos sai coxo, a respetiva Xana cai à água e de lá não mais saiu. Dizem que haverá uma manhã de São João em que se torne visível e então poder-se-à quebrar o feitiço. Quanto ao pobre homem mais rico não terá ficado por não ter quebrado o encantamento de todas as Xanas, concluo eu.
Entramos na N-634 e atravessamos a ponte do rio Narcea entre proteções de ferro pintadas de azul. Lá em baixo, nas águas frescas vive o salmão, o rei do rio. Chama-se "El Campanu" ao primeiro que é pescado em cada temporada e há festa quando acontece. Passamos fora de época. Hoje não há pescadores.
Cornellana é já ali. Já vejo uma "canha" à minha espera. Abancamos no "Meson Dany".
Enquanto espero vou desfilando memórias de leituras feitas:
Cornellana, ou Curniana, diz-se ter origem numa Villa agrícola Romana, a Villa de Cornelius. A "villa" encontra-se documentada desde o séc. X;
No início do ano 1000 era pertença de Ordoño filho de Ramiro III de Leão. Quando Ordoño morreu, em 1012, a viúva Cristina Bermúdez fez voto de consagração e fundou uma igreja na povoação. A igreja torna-se mosteiro por documento de 1024;
A fundação do mosteiro de San Salvador pouco estimula o crescimento da localidade, mas quando, quase cem anos depois, um neto de Cristina o doa aos monges da Ordem de Cluny, grandes impulsionadores das peregrinações a Santiago, aumentam significativamente as instalações, desenvolvem a agricultura e a agropecuária nos territórios concedidos por Alfonso VII, que se estendiam por muitos quilómetros ao redor;
Quando, no séc. XIV, o poder da ordem clunicense caiu, a posse do seu património foi muito disputada e só no reinado dos Reis Católicos se acabaria a disputa com a entrega do mosteiro à congregação de S. Bento de Valladolid.
Mas talvez tenha sido a localização estratégica num centro de passagem e paragem de peregrinos, romeiros, arrieiros, carroceiros, agricultores, ganadeiros, etc... etc... que faz com que se desenvolvam tabernas, casas de pasto, lojas de comércio de bens e serviços. Hoje, o movimento diz o que esta urbe é.
Meia hora, ou mais, terá passado e a(s) "caña(s) já era(m), pelo que retomamos El Camino.
Atravessamos a N-634 e seguimos na rua em frente.
As laranjeiras bravas, no passeio, apresentam frutos que ninguém colhe porque a amargura já se apresenta em dose suficiente no dia a dia. Atravessamos o Nonaya e a sombra "del Carbayón de Cornellana", uma árvore com quase 500 anos e 7m de perímetro. Chegamos à "Plazza del Campillo". À nossa frente, virada para onde o sol se põe, a fachada barroca do mosteiro de San Salvador da segunda metade do século XVII. Nas invasões francesas as tropas napoleónicas fizeram do mosteiro cavalariças e queimaram-no quando saíram. E... mais me não recordo.
Sigamos que se faz tarde e o caminho é longo.
Passamos por detrás da abside tríplice, contornamos o muro do mosteiro e seguimos pelo vale do Narcea.
Por asfalto subimos para Sobrerriba ou Suburriba. Na encosta olhamos o mosteiro lá em baixo e reparamos na torre românica na parte de trás da igreja, restos de outros tempos que o tempo deixa como testemunho.
Outra vez por baixo da A-63. Um pouco acima, agoniza uma velha "panera" mas outras se seguem em melhor estado. Aponto a câmara do telemóvel à mais bonita, uma senhora, da janela da casa ao lado esclarece «Panera... es una panera... no hórreo... hórreo no!». Sorrio, agradeço e corro atrás dos companheiros pouco interessados em hórreos e paneras. Mas vou a pensar naquilo que distingue as duas estruturas, porque pensei que todas eram "paneras" e seriam hórreos apenas as pequenas estruturas galegas idênticas aos espigueiros minhotos. Mas não. Aqui, nestes grandes espigueiros há "paneras" e "hórreos". Xurde Morán explica: «En contra de lo que suele pensarse la diferencia entre hórreo y panera no es el número de pegollos sino la estructura, cuadrada y con techo piramidal (hórreo) o rectangular y con techo de dos moños o picos (panera).». Gracias Xurde.
Saímos da SL-7 junto a um "mojón" com vieira invadida por caracóis. Deixamos Sobrerriba passando por rua onde hórreos e paneras coexistem com casas. Estas em número menor.
Por caminho rural, onde imagino ouvir o chiar das rodas dos carros de bois carregando milho, vamos subindo pisando folhas e ouriços do outono dos castanheiros que sombreiam o nosso caminho, refrescam a alma e poupam os pés. Suavemente vamos descendo entre as árvores deste frondoso caminho e depois carreiro estreito e maravilhoso. Uma ou outra aberta à direita permite ver o lindo vale do Nonaya e a "Sierra de Faxas". Entramos em Llamas e o pombal à beirinha da estrada captura a câmara do telemóvel. À frente um novo e imaginativo "negócio" convida a escrever, desenhar ou pintar uma telha. Muitos o fazem e deixam donativo para lá das frases bonitas ou originais desenhos. Um de nós pára e escreve e mais não fez que deixar a originalidade de um pensamento numa telha. Outros virão, outros lerão, outros meditarão e, depressa hão de esquecer. O caminho faz-se de passos e momentos que se sucedem, uns e outros, mas nenhum se repete.
Um plaino no vale do Nonaya é agora o nosso caminho. Caminho rural largo, plano e reto, tão reto que parece que não acaba. Lá à frente, na encosta, La Quintana com a igreja no centro da nossa atenção e devoção dos seus habitantes. Dizem que aqui terá existido um mosteiro que uma tal Sancha Rodríguez terá doado aos monges de Belmonte.
Acabou a reta no cruzamento para "la Quintana". Logo ali, à esquerda uma merendeira zona à beira da "Fuente de Santiago". Um italiano peregrino refresca os pés no "lavadero" onde a água fresca da fonte cai e descansa antes de seguir caminho. Como é bom seguir o exemplo da sabedoria. Descansam as mochilas ali ao pé, descansam as cansadas botas ali ao pé, descansam na fresca água aqui nossos pés.
Vinte e tal minutos passaram e passaram também os sorrisos de outros peregrinos, também eles passantes. Ficou a memória e o sorriso de dois atléticos casais russos, um residente em Alicante outro na holanda, que ali refrescaram mãos e cara e seguiram apressados.
Para trás ficou a frescura da fonte. Acompanha-nos o desejo de mais frescas temperaturas e Alguém escuta nosso desejo, o sol enevoa-se e o caminho torna-se mais ameno.
Outra velha panera cruza-se conosco neste caminhar que a vida é. Ela imóvel, mais velha e caindo aos bocados agonizante, nós caminhantes de vida diferente ainda com força para sonhar outras vidas.
Ameniza-se o caminhar e humor atravessando este fresco e lindo bosque, pleno de verdura e encanto, onde até o natalício azevinho cresce. Musgo e fetos enfeitam muros e pedras, as heras trepam pelos troncos húmidos, saltamos pequenos "arroyos" e, ouvindo o cantar da água do Nonaya, que só de quando em vez vemos, seguimos embalados em sensações de beleza e espiritualidade. Atravessamos o rio na velha Ponte de Casazorrina que, com três séculos de existência, muitas gerações já suportou e muito teria para contar se a entendêssemos.
Entramos em Casazorrina. A primeira casa é de pedra, ferrosa na cor, o piso cimeiro ripado em madeira, com todas as portas protegidas por grades e por baixo da lateral aparece uma levada de água. Será moinho?... ninguém por aqui está que nos informe.
Entre casas ou velhos muros vamos passando pelo povoado onde a abundância de água permite florir jardins à beira da rua. Uma peregrina fotografa "brincos de princesa" que não conhecia. Dizemos que existem muitas variedades e todas incrivelmente belas. À frente, no nó de uma figueira, um Santiago romeiro encontrou o seu nicho de onde, decerto, abençoa quem passa.
Entre prados deixamos para trás Casazorrina e termina o asfalto perto do rio. Atravessamos de novo o Nonaya, agora na "Pasarela de la Debesa" (ou será "de La Devesa"?... o que significa "terreno dedicado a pasto de gado bovino").
Pouco andámos e, junto a um hórreo, temos "La Torre de la Devesa". Acreditando em quem sabe e, daquilo que nestes caminhos existe, Xurde Morán é mestre, então esta torre data do séc. XVI. Entre ter sido uma venda ou uma casa fidalga aí divergem as opiniões.
Porquê não sei, mas entrei em modo meditação ou "maria vai com as outras" e "acordei" aqui já à entrada de Salas. Se existe algum motivo de interesse depois da Torre de la Devesa não sei, não vi, não registei, pronto.
Estamos na "Plaza de San Roque". À nossa frente a capela do séc. XVII, foi capela do Hospital de Peregrinos de San Roque de Salas que nesta praça existiu e, documentalmente, já em 1405 exercia atividade.
No seguimento da capela um conjunto de casas de arquitetura tradicional com "balcones, corredores y galerías" que foram construídas onde se localizava o hospital.
Estamos na Avenida Galicia. À esquerda o portal da Colegiata de Santa Maria la Mayor. Acabada no ano de 1549, é um monumento gótico, com elementos renascentistas, a que foi adicionada a torre e as capelas no séc.XVII. Foi fundada por Fernando Valdés y Salas, político e eclesiástico muito poderoso e influente na Castela do séc. XVI. Já o havíamos encontrado na estátua do claustro da Universidade em Oviedo a cuja fundação está ligado. Desde arcebispo de Sevilha, inquisidor geral de Espanha, presidente do conselho de Castela, a bispo de Sigüenza, de León, de Oviedo, de Orense e de Elna... tudo este homem fez sobrando-lhe ainda tempo para o mecenato que promoveu com a sua imensa fortuna.
Quando nos preparamos para visitar a igreja gótica dou conta que são quase três da tarde e ainda não almoçámos. Com cerca de 6 quilómetros para andar a subir até Porciles necessário se torna procurar confortar o estômago.
À pergunta que fazemos a quem passava no momento, onde poderíamos comer, a resposta foi perentória «Comer? lo mejor es en la Casa Pachón».
Cá estamos. Com a lotação esgotada arranja-se mais uma mesa e 4 cadeiras que vêm do outro lado da praça. O menu peregrino tem duas opções para cada prato. Peço sopa de lentilhas e carapaus fritos. Comi a sopa. Os carapaus vêm acompanhados de batatas fritas (há sempre uma primeira vez para tudo).
Retomamos o caminho. Ponho-me a recordar, com alguma sensação de pena e culpa, o que ficou por ver em Salas. Quando programei o caminho quiz alongar esta etapa para distribuir de forma mais equitativa a distância a percorrer diariamente. Fiz mal. Salas merecia tempo. Agora nada a fazer. Tanto que gostava de ter visitado a Igreja da Colegiata... e o Museu Pré-românico San Martin, instalado na torre do Palácio dos Valdés Salas e que guarda um conjunto valiosíssimo de peças e lápides epigráficas da igreja de San Martin... e a própria igreja de San Martin que fica apenas a 1km do centro da vila...
Pronto não me martirizo mais. Vamos em frente.
Fica Salas para trás. Vamos leves. As mochilas foram à boleia. Há quem pergunte: Então o irredutível peregrino que critica quem usa o táxi-mochila fez o mesmo?!... posso explicar?... os nossos companheiros chegaram a Salas com dificuldades e mazelas várias. Decidiram ir de táxi até Porciles e tanto insistiram que me convenceram. «É demasiado tarde, o que falta é muito a subir, e mais isto, e mais aquilo...etc...etc...» pronto, cedi. Agora vamos aqui, eu e a minha companheira de vida, acelerados atrás de um senhor, sem mochila mas com bastão de pau, que sobe em passo acelerado. Saudamos e metemos conversa. José caminha de volta a casa em "La Espina". Faz com regularidade este caminho, conhece-o ao pormenor. Seguimos com ele a uma velocidade que, para os seus 63 anos, é excecional. Passamos fontes e pontes antigas, passamos sob os viadutos da inacabada autoestrada da Espina, passamos ao lado de Porciles e a 150 m chegamos ao Albergue, onde os nossos companheiros nos esperavam. Demorámos 1h05m desde Salas. Obrigado José pela companhia, o estímulo e a simpatia generosa. Até sempre José.
Waypoints
Photo
1,338 ft
Hortênsias (hydrangea macrophylla), trombetas (brugmansia suaveolens ), lavadouro antigo e um belo caminho para andar
Photo
983 ft
Colegiata de Santa Maria la Mayor, Torre de la Villa e Museu Pré-românico de San Martin
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Não tenho mais estrelas para dar!...
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Esta trilha é bastante bonita. Os percursos feitos quer em asfalto quer no meio da Natureza não tiveram um grau de dificuldade elevado nem grande perigo de nos perdermos. As paisagens Asturianas continuaram a encher-nos a vista e o coração. Valeu muito a pena conhecer e fazer este caminho.